Eu vejo-te.
Vi-te assim que entrei. As sombras interrompidas pelas luzes epiléticas
mostram-me a tua barba e num momento os teus braços sobem, noutro descem. És
alto. Quando te conheci, longinquamente, não te achei bonito. Tornaste-te
bonito à medida que a noite avançou, naquela noite, não esta, porque nesta eu já
entrei a achar-te bonito. E como havíamos falado durante tantos meses e como
havias deixado de falar, de repente, como se faz on-line. A minha
ansiedade, essa minha insegura confiança, tornou-se num pensamento absurdo ou
válido ou reles e mesquinho: que talvez devesses ser tu a falar-me. Acho que
fingimos os dois não nos vermos, mas se houvesse um destino, fátuo ou jocoso,
eu acreditaria que ele quis que o meu grupo decidisse, alheado da história
toda, ficar perto de onde estavas tu, dançando com o teu grupo.
Eu
encostei-me ao bar. Vi-te passar, como um adolescente (eu e tu), e nem moção
fiz para que me visses. Fizemos isto duas vezes. À terceira, (terás tu roçado
em mim de propósito?) ao passares por mim, eu disse-te olá e dei-te um estalo
na brincadeira. E como tu és alto e imponente e os teus braços são grandes e a
tua barba é sublime. Disseste-me que não tinhas reparado que era eu e que já te
tinhas questionado acerca de quem seria aquele rapaz giro. Que eu entretanto
tinha ficado mais musculado. Fizeste-me sentir bonito pela primeira vez na
noite toda (passara o tempo todo a pensar que era um pequeno peixe num aquário
enorme). E por isso nunca entenderei porque me pareces intimidado por mim,
porque te ris, amiúde, de forma nervosa. E és doce. És querido. Uma lufada de
ar fresco numa discoteca repleta de fumo e futilidade e corpos vazios.
Conversámos
uma conversa de quem não se vê há imenso tempo e só se viu uma vez na vida.
Temos história mas é história virtual. O que partilhámos nós, afinal? És
brando: vês-me a dançar sozinho e puxas-me para que dance contigo. Eu não sei
dançar, os meus pés toscos e os meus ombros presos envergonham-se perante a tua
fluidez e altura (não altivez, entendes?), e quando me seguras enteso-me todo
(não daquela forma sobre a qual me questionas, mais tarde, não, eu não estava
teso porque já te explico), fico rígido não porque quero resistir mas porque me
acobardas. A uma altura pegas em mim e levantas-me e eu sinto-me leve nos teus
braços. E eu nunca me sinto leve.
Sempre
fui um bom ator, no entanto. Sei pôr um olhar que se deixa ver como solidamente
seguro. Sei dizer as coisas que fazem de mim um orador confiante. Tu ris-te
nervosamente, pois, como dizes, tens de te afastar porque há demasiada empatia
entre nós (só porque te sugeri que me convidasses para um café no dia seguinte,
a sério?). E assim, neste vaivém de claro-escuro, de aproximações e
afastamentos, a noite desenrola-se arbitrariamente (e após me teres contado que
já não namoras) até as luzes saírem da epilepsia e o volume da música baixar e
a própria música acalmar numa balada que podia ser a primeira música da
primeira dança do primeiro casamento. E chamas-me outra vez para dançar, desta
vez, de forma mais gentil, meio abraçados, agarrados, cabeças postas nos ombros
opostos, ali, na pista, tão lentos no movimento, e eu tenho a sensação de que
se formou um círculo à nossa volta, que todos nos olham e, intermitentemente,
concentro-me no momento (é aqui que me acusas de estar ereto, enquanto eu penso
num hipotético futuro) e deixo a imaginação imaginar o nosso casamento (porque
tu és grande e forte e eu poderia sentir-me seguro em ti, mas sobretudo porque
és frágil e terno e nervoso e envergonhado e doce e suave e eu poderia fazer-te
mais forte), eu sóbrio e tu bêbado[1]
(aqui estará o cerne da disparidade, mais tarde).
Pedes-me
boleia para casa mas cedo nos apercebemos de que não ficará a caminho para mim.
Tu vais pagar o cartão e eu não resisto e envio-te uma mensagem (como fazíamos
há uns meses atrás) a dizer que me deixas perturbado + emoticon + lol
embaraçado. Tu pedes-me que esteja atento ao telemóvel porque há uma hipótese
de perderes o teu comboio, o que acaba por acontecer. Eu ofereço-me para te
levar, para que não fiques sozinho na estação à espera do próximo. O meu amigo
diz-me que se é para te levar que ao menos usufrua de ti, que vamos para a cama
juntos, que nos comamos de uma forma fria e carnal. Mas não é isso que quero.
Quero apenas falar contigo e talvez beijar-te quando nos despedirmos. Queria
saber-te. Porque me irrequietas.
A
nossa conversa é tão fluída. O flirt entre nós é tão doce. Ao chegarmos
pedes-me para estacionar, desligas-me o carro e dizes-me que não vamos
beijar-nos porque estiveste a beber (estás bêbado) e a fumar. Mas permaneces.
Não fazes questão de abrir a porta. Eu digo que não me importo com o teu hálito
e que sim, vamos beijar-nos (terei de ser sempre eu a fazer isto?)
A
tua boca é feita de veludo (veludo e não seda, entendes?) e falamos, por fim, a
mesma língua. Assim continuamos sôfregos, o dia já de dia e a chuva lá fora
talvez a indiciar a nossa história, não como um crime mas como um desfalque
(como adolescentes, tal como na discoteca). As tuas mãos vão de vez em quando a
sítios aonde não quero que vão, e eu afasto-as. Não era isso que queria que
acontecesse. E também não me sinto à altura e estou suado e tu vais achar
nojento e foda-se estou tão entusiasmado que não consigo ficar teso (agora sim,
essa forma de estar teso) e tu estás e os teus olhos, bom, eu não consigo
perceber se estão concentrados no momento ou se é apenas o álcool a ver.
Claro
que eu sou fraco e fazemos tudo o que se pode fazer dentro dum carro comercial.
Procuramos lenços de papel para que não nos sujemos. Pedes-me que te olhe nos
olhos enquanto te vens e perguntas-me se demoro a vir-me ou não, porque queres
que me venha contigo. Isso acontece desfasadamente, mas acontece. O teu esperma
jorra e é espesso. Tinha-te dito que suspeitava que gemesses de uma forma
bonita enquanto te vens e isso confirma-se. Tu vens-te e esperas que eu me
venha. O som seco da minha garganta enquanto me venho distraiu-me do que estava
a acontecer, e só reparei quando o orgasmo passou que me tinha vindo, abundantemente,
para cima do teu casaco, que rapidamente dizes ter custado duzentos euros
(porquê falar do preço, não sabes que o dinheiro estraga tudo?).
O
cómico é que isto tinha de acontecer. Não podia ser, simplesmente, inócuo e
perfeito. Isto estava para acontecer. Pareces-me chateado e eu fico fodido por
estares tão chateado porque eu dei-te boleia, mas depois acalmas e eu não acho
que estejas assim tão chateado. Espero que não estejas. Não me sinto culpado.
E
porque nos tínhamos vindo e isso é o mesmo que ficar sóbrio a todos os níveis,
chega a hora da despedida, porque agora as tuas hormonas já acalmaram e reparas
que, muito simplesmente, estás a morrer de sono (eu sinto-me feio, desgrenhado
e suado): “Manda-me mensagem quando chegares…quer dizer, já vou estar a dormir,
mas manda na mesma”, enquanto me dás dois bate-chapas (para onde foi o calor e
a envolvência e a língua e os braços a segurar a nuca e os gemidos e o olhar?)
e sais do carro, depois de deixares uns trocos para as portagens.
Eu vejo-te. Vejo-te assim que sais do carro. Não olhas para trás. Não me convidas para um café no dia seguinte. És alto. E os teus braços são grandes e a tua barba continua sublime. Quando te conheci, longinquamente, não te achei bonito. Hoje, a tua caixa abriu-se. Porque te tornaste, agora, uma beleza terrível?
Eu vejo-te. Vejo-te assim que sais do carro. Não olhas para trás. Não me convidas para um café no dia seguinte. És alto. E os teus braços são grandes e a tua barba continua sublime. Quando te conheci, longinquamente, não te achei bonito. Hoje, a tua caixa abriu-se. Porque te tornaste, agora, uma beleza terrível?