Conseguia ouvir-me dizer cá dentro, pára pára pára pára pára, um grito insondável, de um lado, repetido à infinidade da minha boa costela, quando, do outro lado, uns dedos negros e cobertos de lama agarravam o centro solar que existia no meio do meu pescoço mesmo antes da caixa torácica, esmagavam-no, filhos da puta, ao espelho não se lhes via as unhas nem a existência, mas como eles me prendiam, amaldiçoados sejam amaldiçoados até ao osso amaldiçoados, continuei querendo escutar mais a minha benévola cavidade, os dedos sem largarem, curse them curse them, vomitei e sacudi saliva, tentava salvar-me e não subitamente comecei a ver a minha mão direita coberta de esterco, preta, os meus olhos viram, vejam lá, viram para além da imagem reflectida o meu pescoço coberto de terra molhada, escorrendo a porcaria peito abaixo, pára pára pára pára.
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sexta-feira, 19 de agosto de 2011
sexta-feira, 5 de agosto de 2011
a hora do diabo
Disse-me apenas, Desce. Depois, repetiu o imperativo duas vezes num tom um pouco mais alto e um tanto ou quanto ridículo porque se deve ter apercebido que eu não o tinha ouvido da primeira vez nem da segunda. Nunca pensei que o Diabo pudesse ser uma figura ridícula. O tom ligeiramente exasperado, lembrando-me agora das coisas e com a noção de que a memória inventa lugares perdidos que nunca, passo a expressão, tiveram lugar de qualquer forma, esse tom um pouco mais áspero ainda que me tenha assustado na altura é-me agora regressado em jeito mnémico e daí resulta que isso me divirta e me esboce um sorriso involuntário. Levantei-me na escuridão e retirei os auscultadores do ouvido. Premi o botão pause no leitor de música e ouvi o som das trevas, surdo e impiedoso. Provavelmente já aborrecidíssimo, o Diabo repetiu uma última vez, Desce.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
"e o meu sonho desapareça"
O rapaz estendeu a sua mão e ofereceu ajuda. Escorria-lhe do olhar um vago temor triste, uma profunda compreensão pelo castelo de areia que o outro erigira na sua praia deserta. A mão estendida, os olhos turvos, as costas curvadas sob o sol ardente, o rapaz esperava um qualquer sinal que fosse, mas o outro, contemplando apenas a sua fortaleza, ignorou que alguma mão ali estivesse para o salvar da onda pintada de azul, revolvendo o chão do mar em sua passagem num estrondo primeiro surdo e paulatinamente mais audível. Quando a água bateu na areia, o que sobrou na dourada planície foi apenas a areia, e o castelo, outrora indissolúvel, desaparecera entre as duas mãos nunca unidas.
domingo, 31 de julho de 2011
I'm a happy person
I’ve been to the depths of myself
And left tattered and torn.
But despite myself,
I’m a happy person.
And “when I fall I’ll weep for happiness”
with blue faces carved on my skin.
And beneath it the clearest sun shines.
So clear, I feel the heat of its core
right in the center of my broken toll.
It’s just hard to let the sun out
when the rain my skin is falls hard
on the walls I’ve built only to arrest myself in harm.
I’ve been to my own fortress
And became trapped in it.
But despite my well staring at the sky
I’m a happy person.
quarta-feira, 27 de julho de 2011
a rude metafísica [nunca te será o reino dos céus]
A José não era alheia a existência mas entregava-a ao poder divino de um deus que não conhecia por nunca lhe ter lido as palavras. Sabia dele o que lhe havia sido ensinado pelos pais e o que ouvia na missa. Não compreendia a figura que o observava de um lugar qualquer no céu, porventura não falariam sequer a mesma língua, mas a certeza de que alguém superior ordenava os mecanismos do mundo era reconfortante e servia de energia para que a máquina que era o seu instinto básico de sobrevivência continuasse a pulsar mesmo perante uma realidade tão severa. Abriu o pequeno portão de madeira da sua propriedade e a passo muito lento caminhou até à porta.
a mulher que não conseguia escrever romances
Sentou-se e olhou para a página meia escrita. Pediu novo café e decidiu-se a transformar o que imaginara em literatura. Pensar as palavras certas, as descrições límpidas e as metáforas acertadas, mas o período. Como desaparecessem os homens e mulheres que ficcionalmente lhe haviam invadido a imaginação, fechou o caderno bruscamente. Nunca escreveria um romance. E na sua cabeça de literária a culpa era do período, o bode expiatório a degolar era o ser mulher, fêmea, fraca e exposta. E desejou ter nascido homem com um pénis que simbolicamente fosse a mão a semear a terra e a possuí-la. Aquela sua chaga, pensava, aquela sua chaga era a realidade inevitavelmente a tocar-lhe com os seus dedos corriqueiros e vulgares. Ah, como era filha de uma grande puta, a realidade.
segunda-feira, 18 de julho de 2011
spreading an eclipse.
Em meus momentos escuros Em que em mim não há ninguém, E tudo é névoas e muros Quanto a vida dá ou tem, Se, um instante, erguendo a fronte De onde em mim sou aterrado, Vejo o longínquo horizonte Cheio de sol posto ou nado Revivo, existo, conheço, E, ainda que seja ilusão O exterior em que me esqueço, Nada mais quero nem peço. Entrego-lhe o coração. Fernando Pessoa |
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