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sábado, 28 de janeiro de 2012

a anarquia dos pequenos terramotos


Uma vez vi mesmo um preto a cagar contra a parede do Teatro Nacional Dona Maria em plena luz do dia, e arrisquei-me, perdoem-me a audácia e má-fé, arrisquei-me a ponderar se aquilo seria uma prova da maior humilhação a que um ser humano pode ser sujeitado ou se, por outro lado, seria uma acção de conquista total e maior de liberdade. Rabo ao léu, o ar quente como o Agosto assim o ditava, e a merda contra a intelectualidade e a arte, contra aquele edifício que era consequência da ordem, história e renascimento do país. Mesmo ali, sem tirar nem pôr, o homem cagou para o império.  E o Gil Vicente, especado lá em cima, haveria de rir-se se essa fosse a verdade, se o homem estivesse mesmo afirmando o seu desprezo por tudo o que aquele teatro simbolizava e a declarar a sua liberdade, a última liberdade, a anarquia de deixar a sua marca fedorenta contra a parede branca do esplendor dramático de Portugal.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pedro

Foi há tanto tempo. 
Foi há tanto tempo que me sentei pela primeira vez naquela que seria a minha definitiva cadeira na escola primária, em frente àquela eterna mesa. Enormes, as duas coisas moldaram o meu corpo durante quatro anos e depois de transitar para o básico creio com a força da vida que a marca das minhas costas, rabo, pernas e cotovelos ainda permanecem naqueles objectos. Verdade, talvez tenham sido substituídas, a cadeira e a mesa, talvez tenham sido queimadas, talvez. Eram enormes, maiores e mais assustadoras do que alguma coisa que até altura tinha visto. 
Eu estava muito nervoso no primeiro dia de escola. Dizer adeus à minha mãe foi tirarem-me o mundo enforcando-me o estômago. Eu tremia, tremia tanto, tremia por dentro, chorava cântaros sem verter uma lágrima só porque me tinham ensinado a não chorar em frente a estranhos. Foi então que conheci o meu primeiro e melhor amigo de escola. Ele sentou-se a meu lado porque tinha visto aquele lugar vago. Lembro-me dessas palavras e da energia e felicidade dele. 
Com o passar dos anos, desenvolvemos até um aperto de mão personalizado que só nós conhecíamos. Jogávamos consola e estudávamos juntos, alternadamente em minha ou em casa dele.
Não sei o que nos aconteceu - separámo-nos a um determinado momento e os anos passaram, conhecemos outros amigos, vivemos outras vidas, os nossos corpos cresceram enquanto as nossas cadeiras e mesa da primária mingavam. 
Há quanto tempo foi que tudo aconteceu?
reencontro.
Permanecemos puros um com o outro, no entanto, e reencontrámos o aperto de mão. Felizes de sabermos que ainda temos tantos anos juntos pela frente. 
E que as cadeiras e a mesa se conservem para sempre maiores do que nós.