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quarta-feira, 18 de maio de 2016

o casaco; o desfalque

Eu vejo-te. Vi-te assim que entrei. As sombras interrompidas pelas luzes epiléticas mostram-me a tua barba e num momento os teus braços sobem, noutro descem. És alto. Quando te conheci, longinquamente, não te achei bonito. Tornaste-te bonito à medida que a noite avançou, naquela noite, não esta, porque nesta eu já entrei a achar-te bonito. E como havíamos falado durante tantos meses e como havias deixado de falar, de repente, como se faz on-line. A minha ansiedade, essa minha insegura confiança, tornou-se num pensamento absurdo ou válido ou reles e mesquinho: que talvez devesses ser tu a falar-me. Acho que fingimos os dois não nos vermos, mas se houvesse um destino, fátuo ou jocoso, eu acreditaria que ele quis que o meu grupo decidisse, alheado da história toda, ficar perto de onde estavas tu, dançando com o teu grupo.
            Eu encostei-me ao bar. Vi-te passar, como um adolescente (eu e tu), e nem moção fiz para que me visses. Fizemos isto duas vezes. À terceira, (terás tu roçado em mim de propósito?) ao passares por mim, eu disse-te olá e dei-te um estalo na brincadeira. E como tu és alto e imponente e os teus braços são grandes e a tua barba é sublime. Disseste-me que não tinhas reparado que era eu e que já te tinhas questionado acerca de quem seria aquele rapaz giro. Que eu entretanto tinha ficado mais musculado. Fizeste-me sentir bonito pela primeira vez na noite toda (passara o tempo todo a pensar que era um pequeno peixe num aquário enorme). E por isso nunca entenderei porque me pareces intimidado por mim, porque te ris, amiúde, de forma nervosa. E és doce. És querido. Uma lufada de ar fresco numa discoteca repleta de fumo e futilidade e corpos vazios.
             Conversámos uma conversa de quem não se vê há imenso tempo e só se viu uma vez na vida. Temos história mas é história virtual. O que partilhámos nós, afinal? És brando: vês-me a dançar sozinho e puxas-me para que dance contigo. Eu não sei dançar, os meus pés toscos e os meus ombros presos envergonham-se perante a tua fluidez e altura (não altivez, entendes?), e quando me seguras enteso-me todo (não daquela forma sobre a qual me questionas, mais tarde, não, eu não estava teso porque já te explico), fico rígido não porque quero resistir mas porque me acobardas. A uma altura pegas em mim e levantas-me e eu sinto-me leve nos teus braços. E eu nunca me sinto leve.
          Sempre fui um bom ator, no entanto. Sei pôr um olhar que se deixa ver como solidamente seguro. Sei dizer as coisas que fazem de mim um orador confiante. Tu ris-te nervosamente, pois, como dizes, tens de te afastar porque há demasiada empatia entre nós (só porque te sugeri que me convidasses para um café no dia seguinte, a sério?). E assim, neste vaivém de claro-escuro, de aproximações e afastamentos, a noite desenrola-se arbitrariamente (e após me teres contado que já não namoras) até as luzes saírem da epilepsia e o volume da música baixar e a própria música acalmar numa balada que podia ser a primeira música da primeira dança do primeiro casamento. E chamas-me outra vez para dançar, desta vez, de forma mais gentil, meio abraçados, agarrados, cabeças postas nos ombros opostos, ali, na pista, tão lentos no movimento, e eu tenho a sensação de que se formou um círculo à nossa volta, que todos nos olham e, intermitentemente, concentro-me no momento (é aqui que me acusas de estar ereto, enquanto eu penso num hipotético futuro) e deixo a imaginação imaginar o nosso casamento (porque tu és grande e forte e eu poderia sentir-me seguro em ti, mas sobretudo porque és frágil e terno e nervoso e envergonhado e doce e suave e eu poderia fazer-te mais forte), eu sóbrio e tu bêbado[1] (aqui estará o cerne da disparidade, mais tarde).
            Pedes-me boleia para casa mas cedo nos apercebemos de que não ficará a caminho para mim. Tu vais pagar o cartão e eu não resisto e envio-te uma mensagem (como fazíamos há uns meses atrás) a dizer que me deixas perturbado + emoticon + lol embaraçado. Tu pedes-me que esteja atento ao telemóvel porque há uma hipótese de perderes o teu comboio, o que acaba por acontecer. Eu ofereço-me para te levar, para que não fiques sozinho na estação à espera do próximo. O meu amigo diz-me que se é para te levar que ao menos usufrua de ti, que vamos para a cama juntos, que nos comamos de uma forma fria e carnal. Mas não é isso que quero. Quero apenas falar contigo e talvez beijar-te quando nos despedirmos. Queria saber-te. Porque me irrequietas.
          A nossa conversa é tão fluída. O flirt entre nós é tão doce. Ao chegarmos pedes-me para estacionar, desligas-me o carro e dizes-me que não vamos beijar-nos porque estiveste a beber (estás bêbado) e a fumar. Mas permaneces. Não fazes questão de abrir a porta. Eu digo que não me importo com o teu hálito e que sim, vamos beijar-nos (terei de ser sempre eu a fazer isto?)
           A tua boca é feita de veludo (veludo e não seda, entendes?) e falamos, por fim, a mesma língua. Assim continuamos sôfregos, o dia já de dia e a chuva lá fora talvez a indiciar a nossa história, não como um crime mas como um desfalque (como adolescentes, tal como na discoteca). As tuas mãos vão de vez em quando a sítios aonde não quero que vão, e eu afasto-as. Não era isso que queria que acontecesse. E também não me sinto à altura e estou suado e tu vais achar nojento e foda-se estou tão entusiasmado que não consigo ficar teso (agora sim, essa forma de estar teso) e tu estás e os teus olhos, bom, eu não consigo perceber se estão concentrados no momento ou se é apenas o álcool a ver.
        Claro que eu sou fraco e fazemos tudo o que se pode fazer dentro dum carro comercial. Procuramos lenços de papel para que não nos sujemos. Pedes-me que te olhe nos olhos enquanto te vens e perguntas-me se demoro a vir-me ou não, porque queres que me venha contigo. Isso acontece desfasadamente, mas acontece. O teu esperma jorra e é espesso. Tinha-te dito que suspeitava que gemesses de uma forma bonita enquanto te vens e isso confirma-se. Tu vens-te e esperas que eu me venha. O som seco da minha garganta enquanto me venho distraiu-me do que estava a acontecer, e só reparei quando o orgasmo passou que me tinha vindo, abundantemente, para cima do teu casaco, que rapidamente dizes ter custado duzentos euros (porquê falar do preço, não sabes que o dinheiro estraga tudo?).
        O cómico é que isto tinha de acontecer. Não podia ser, simplesmente, inócuo e perfeito. Isto estava para acontecer. Pareces-me chateado e eu fico fodido por estares tão chateado porque eu dei-te boleia, mas depois acalmas e eu não acho que estejas assim tão chateado. Espero que não estejas. Não me sinto culpado.
          E porque nos tínhamos vindo e isso é o mesmo que ficar sóbrio a todos os níveis, chega a hora da despedida, porque agora as tuas hormonas já acalmaram e reparas que, muito simplesmente, estás a morrer de sono (eu sinto-me feio, desgrenhado e suado): “Manda-me mensagem quando chegares…quer dizer, já vou estar a dormir, mas manda na mesma”, enquanto me dás dois bate-chapas (para onde foi o calor e a envolvência e a língua e os braços a segurar a nuca e os gemidos e o olhar?) e sais do carro, depois de deixares uns trocos para as portagens.
         Eu vejo-te. Vejo-te assim que sais do carro. Não olhas para trás. Não me convidas para um café no dia seguinte. És alto. E os teus braços são grandes e a tua barba continua sublime. Quando te conheci, longinquamente, não te achei bonito. Hoje, a tua caixa abriu-se. Porque te tornaste, agora, uma beleza terrível?




[1] Cf. Desejo de compromisso existe, afinal.

sábado, 30 de abril de 2016

o conto das duas raposas

       Escorregou da boca e quase caiu na neve. Se caísse, quebraria o rasto contínuo sobre o manto branco e criaria uma mancha. Era carregada a custo e com passada leve, no silêncio da montanha, onde não era possível ouvir-se o sangue escorrer-lhe do corpo: uma espécie de compasso fúnebre. O vento cortava o silêncio. Uivando. Silvando num redemoinho agudo.
         Não lhe era importante que o tempo urgisse, que os lobos cedo fossem sentir a morte no ar. Para ela nada era importante, não mais. O seu pelo branco, agora manchado. Vistas um pouco mais de longe, dir-se-ia que as duas raposas eram iguais. 
       O movimento parou e ela foi erguida no ar. Não podia notar, mas havia uma respiração ofegante no seu pescoço, um alheamento que permitiria escutar algum ruído distante, um bafejar aflito. Mas o vento abriu-lhe o pelo do dorso com uma rajada direcionada e a caminhada recomeçou, o passo acelerado, mais diminuto mas também mais lesto.
Numa curva marcada por um penedo havia uma toca e seis olhos famintos. Se conseguisse, sentiria o calor aconchegante daquele buraco. Foi largada no chão com cuidado e, por momentos, dir-se-ia que permaneceria intacta e apenas caída, como uma piedade, mas no calor daquele cadoz a saciedade não se compadecia da morte nem a crueldade suplantava a ausência do artifício. A natureza era assim: o sustento possível e necessário até mais não haver.
A que servia de refeição estava tingida pelo pescoço abaixo de vermelho-sangue, como a imitar as outras que agora a devorariam. Era-lhes em tudo igual exceto na cor do seu pelo, branco como a neve que pisara, viva, e agora maculado. Os dentes haviam-se-lhe arreganhado para sempre num esgar indecifrável.

          O progenitor deitou-se nas quatro patas e enroscou a cauda à volta do corpo peludo. As crias atiraram-se sobre a refeição e a mãe, que esperara pacientemente, lambeu com tranquilidade o focinho da raposa-macho. Sobreviveriam mais uns dias. 


Don Gutoski, "A Tale of Two Foxes"




quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

sou diagonal

Sou diagonal mas perdi
o jeito de viajar com
os olhos para dentro.
Se me atravessar um jato
melhor que seja vertical
e não de água mas de vento,
primordial e redondo.

Caminho mais quanto
mais horizontal estou:


Axioma: dissolver
os anéis que me prendem
e fazem abismos no ar.
E se por acaso puder voar,
que seja um voo espiral,
lasso, russo e
transversal:

que atravesse a história
do mundo e as heras enrodilhadas
nas torres dos castelos e palácios
onde eu aterrar.