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quinta-feira, 26 de maio de 2011

a mulher, ainda.

Uma mulher, visivelmente deslocada, saiu do autocarro, os óculos de sol tapando-lhe substancialmente o rosto e o lenço zebrado cobrindo-lhe os cabelos, olhou em volta e permaneceu em seu lugar, ondulada pela brisa quente, após o som da viatura, morosa, ter desaparecido no espaço. Não se sabe quem esta mulher era, nem que vinha fazer à aldeia, tão desabituada a estranhos. A sua barriga de grávida parecia uma deformação perante o resto do corpo delicado, estreito. A mulher continuou silenciosa e quieta, olhando em volta, à procura de alguém ou de algo. As poucas pessoas que naquela rua se demoravam nos pensamentos, sentadas nos bancos públicos, observavam-na com alguma curiosidade e relutância. O sino da aldeia soava não longe dali e à última badalada a figura de vestido preto segurou com mais força a sua mala e principiou em caminhar em direcção à tasca. 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

"cerra-se o frio"

Leva-me a ver Diógenes. Maria Helena disse estas palavras sem a certeza de as sentir ou sequer de que o que elas significavam fosse possível. Baltazar Alexandre, que mexia a sopa ao lume, parou por momentos, a sua face iluminada pelo fogo. Era como se soubesse que aquele pedido era inevitável, e não sabia se o temia ou por que razão o temia, como se acedendo à súplica de Maria Helena um qualquer mecanismo já em andamento iniciasse um movimento perpétuo cujo resultado seria nefasto. Sem se voltar para a mulher, disse somente, Primeiro, comeremos. E voltou a mexer a sopa agora apenas por mexer.
O ágape foi o silêncio do tempo. Comeram os dois, homem e mulher, cada um pensando coisas diferentes ou porventura equivalentes, não se atreveriam a revelá-las. Terminaram, Maria Helena entregou o seu prato a Baltazar Alexandre, que lavou a loiça numa velha pia barulhenta. É tarde já, disse o velho homem. É melhor que agora durmamos e amanhã pensemos nos passos a dar em seguida. Maria Helena não pareceu satisfeita com as suas palavras, sentia-se cansada, sim, mas saberia que nenhum descanso seria possível. Perguntou, no entanto, Onde durmo. Dormirás na minha cama e eu na sala, e por favor não insistas em dizer que não porque não poderia ser de outra forma, estando tu grávida e nós em minha casa. Maria Helena reconheceu nesse instante o mesmo Baltazar Alexandre que conhecera e, por momentos, a sua vista que só via noite conseguiu vislumbrar um rasgo de luz límpida. 

quinta-feira, 12 de maio de 2011

"NA CARÍCIA DE UM GESTO FUGIDIO"

"Não deixai que ao casamento das almas verdadeiras
Admita impedimento. Não é amor o amor
Que se altera quando a alteração encontra,
Ou se curva com o que se afasta afastando-se.
Oh não, é uma marca fixa para sempre
Que enfrenta as tempestades sem ser abalada;
É para todo o barco à deriva a estrela,
Cujo valor se ignora, embora em altitude seja considerada.
Não é o Amor ludibriado pelo Tempo, embora lábios e rostos rosados
Dentro do seu compasso curvo como uma foice venham,
Não se altera o Amor com as suas breves horas e semanas;
Mas há-de suportá-las até ao fim dos tempos:
        Se isto for erro e acerca de mim provado,
        Nunca o escrevi nem nenhum homem terá amado."


E. E. Cummings, eu: seis inconferências.

ubiquity

And if I ever lose my blues
The city will bring them back to me
 At dawn, at dawn.
This isn’t happiness, this is acceptance.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

ENTRA, ROSTO.

Irremediavelmente, sou eu.
Atravessemos as flores e os espinhos,
juntos. Nesse jardim, hei-de olhar-te
como se olha uma rosa a florir em sangue.
Quando dormias a meu lado, lutei
contra as lágrimas do silêncio do teu corpo,
dos teus olhos vendo escuridão.
Atravessemos, pois, a água e as árvores,
e depois chora por mim, acordado.
 
A noite é-me tão escura.
O tempo tem gravidade absoluta.
 
Incomensuravelmente, estou aqui.
Abracemo-nos face à Primavera,
enlaçados. Nessa janela, hei-de ver-te
partir como sempre quando partes.
Mesmo se as lágrimas secarem, haja
um oceano quente para os barcos
que criámos ao navegar nos lençóis.
Naveguemos, pois, neles até
às praias que jurámos, adormecidos.
 
Que na noite eu seja grande como tu.
E que o tempo seja o nosso centro.

na noite que me tem tido

7
Choro por ti, interminavelmente.
Sem poesia alguma, será que assim fico
mais feminino, diz? Na aula de boxe
hei-de esmagar um crânio, e levantá-lo
num plinto de cristal sobre esta cama
onde esqueci o clube a que pertenço.
Que farei eu, se me acontece
amor sem corpo ao corpo atravessado
e, contra tudo, quero o que não sou?
Também tu és criança, mulher, homem,
bicho tardio que me consome o rosto,
misturado comigo é quando existes.
Já de olhos secos me vesti de tudo,
até quando quiseres que seja nada.

in António Franco Alexandre, Duende.

o caminho que a vida encontra, vindo.

No entanto, nunca em nenhuma dessas excursões Eva se tinha aventurado em demasia pelas ruas cheias de gente diferente das gentes que conhecia na aldeia, talvez por receio da sedução do que é morbidamente apelativo para quem a vida não parece prometer mais do que um tecto e muito labor. E assim o mundo era para ela o seu casamento com Nero, a incapacidade dos dois de terem filhos e agora a perspectiva de ter finalmente um rebento sangue do seu sangue. Tudo o que existia de permeio nesses momentos que Eva considerava serem o significado necessário da sua existência calada pelas subtis forças da ruralidade que era o seu berço, todos os instantes que eram os compassos de espera entre o nascimento, o casamento, o ventre secado pelo calor e o frio e agora o futuro parir de alguém seu constituíam apenas tempos que pouco ou nada lhe diziam. E foi ainda com uma alegria de menina que Eva acabou de lavar o último prato e o pôs a escorrer. Lançou até um derradeiro olhar ao cão que seguia farejando um rasto intermitente na rua, sorriu e saiu da cozinha. Os últimos raios de sol daquele fim de tarde começavam a emagrecer visivelmente e Eva não reparou que o que o cão procurava era um lugar isolado onde pudesse morrer.

mais um pouco da forma das coisas vindouras

Ainda em tão tenra idade, tão puto e depenado, suave como uma criança qualquer, dourado pelos cabelos claros e moreno do labor dos dias das férias de Verão, ainda em tão tenra idade Diógenes elaborava diversos tratados filosóficos mas nunca se sentia tentado a escrevê-los, porventura por falta de vocabulário suficiente para significar no papel os conceitos organizadamente inomináveis que lhe iam na cabeça, mas também por uma falta de vontade de aborrecer o que pensava com o transporte do que lhe parecia belo e verdadeiro na sua mente para um papel onde, desconfiava, todas as palavras que usasse iriam roubar dos seus pensamentos uma qualquer espécie de pureza e significado que era o que significava. Então Diógenes trabalhava o seu corpo ao mesmo tempo que discorria em pensamento sobre todos os temas que fossem os temas daquele dia ou daquele preciso momento.

domingo, 8 de maio de 2011

das coisas que estão para vir.

A mulher deambulava pela aldeia com as malas nas mãos e não sabia se havia de ficar ou partir. A noite caíra sobre a terra, e as estrelas, buracos por onde se podia vislumbrar o paraíso, não lhe marcavam o caminho. Como um pirilampo sem luz, não via o rumo que seguia e tomava. Ao pousar as malas, caiu também o desespero do deslocamento, da acutilância da noite e do peso de estar em busca de uma agulha num palheiro sem saber se a queria realmente encontrar. As suas pernas absorveram-lhe toda a ansiedade dos olhos olhando para dentro, e teve de sentar-se. Não tinha fome de comida nem sede de água. O objectivo da sua missão escondia-se cada vez mais, coberto por um caos que lhe confundia todos os propósitos. Então, sob o luar e o terrível céu brilhante, a mulher não conseguiu chorar – antes entregou-se a um martírio autista que catatonicamente a destruía perante a treva resplandescente da noite.


de um homem para todos.

Aceitemos então que estamos sozinhos e, a partir daí, façamos a nova descoberta de que estamos acompanhados – uns pelos outros. Quando pusermos os olhos no céu estrelado, com a furiosa vontade de lá chegar, mesmo que seja para encontrar o que não é para nós, mesmo que tenhamos de resignar-nos à humilde certeza de que, em muitos casos, uma vida não bastará para fazer a viagem – quando pusermos os olhos no céu, repito, não esqueçamos que os pés assentam na terra e que é sobre esta terra que o destino do homem (esse nó misterioso que queremos desatar) tem de cumprir-se. Por uma simples questão de humanidade.

In Deste Mundo e do Outro, Ed. Caminho, 3.ª ed., pp. 216-217

Aqui: http://caderno.josesaramago.org/2010/06/28/questao-de-humanidade/

sexta-feira, 6 de maio de 2011

fala-só

A Caixa Número Três, A Quinta Bobina

A Krapp

A minha memória gravada, (solidão de quem recorda
sem se lembrar), entoa a minha voz apagada,
enquanto eu, preso a um fio rompido, bebo à minha loucura
de ser estrume. E escorrego nele, de face calada,
rememorando os obtusos anos
da minha procura.
Suspendo o fio, adianto, regresso e
grito nos intervalos da lembrança
e contra-digo o discurso que digo;
os aniversários enfadam-me, o amor cansa,
eu fui porcaria jovem e a minha aurora
um castigo.
Nessa caixa número três, na quinta bobina,
rodam os anos magoados,
e eu bebo sozinho e amaldiçoo toda a minha história;
para mais tarde, vencido, de olhos tão fechados,
que se abrirão vazios, escutar abraçado o silêncio
da minha memória.

terça-feira, 3 de maio de 2011

st. james and his last name.

it's a circle. and maybe this seat feels just the same. you know, like the movement of the earth.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

"when one world ends, something else begins"

INVERTEBRADO

Nunca soubeste nem saberás
quantos mundos eu segurei por ti,
amor – quantos cigarros queimados.
Não sabes os cortes de navalha,
não conheces a minha pele límpida a chamar-te amor – confessar,
nunca confessarei o acidente.
Não descobrirás, amor, as pistas nem as provas
desse amor em voo picado. Nem saberás o tempo de nós.
Porque o tempo, amor,
o nosso tempo nunca foi suficiente.
Dir-te-ei apenas que te amo e isso bastará.
E se algum dia disser que te amei acredita que será verdade.
Mas os milagres contam-se depois de acontecerem.

Nunca soubeste nem saberás
quantos mundos por ti criei,
amor – quantas vezes por ti me matei.
Amando o sofrimento de te amar.


Química



Toda uma vida
agrilhoada a compósitos que
lhe dão vida.
Houve mesmo quem
dissesse,
disseram,
que te amei quimicamente iludido porque
a nossa química era não mais do que
uma ideia pela qual me apaixonei para sempre até me acabarem
os comprimidos.