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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

as saudades chinesas

    Lembro-me de ser pequeno e ir a restaurantes chineses. A comida agridoce a ser novidade, os pauzinhos, a colher de porcelana para a sopa, os empregados sorridentes, arroz chao chao, banana fa si. 
    No entanto, do que mais me lembro é a súbita pena que senti dessas pessoas de aspecto diferente, de língua diferente, que faziam tudo ao contrário de nós e que se mostravam, exóticos, ao Ocidente, encaixados por serem o outro. Eu não sabia exprimir-me como o sei agora e talvez a memória me esteja a atraiçoar ao escrever estas palavras, mas eu recordo com a força de um nó que aperta a garganta, recordo essas lágrimas que tive de conter ao imaginar e, de facto, ler (provavelmente apenas na minha cabeça) nos seus rostos a dor da distância que vai entre a China e Portugal, entre o Oriente e o Ocidente, entre o uso de pauzinhos e o uso de um garfo e de uma faca. E lembro-me apenas dessa dor que eu sentia por eles. E da pena que me davam por eu achar que eram muito sozinhos. 
    E de tentar agradecer ao máximo e dar-lhes o que podia: um sorriso que valesse as saudades que em chinês porventura sentissem.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

o desenhador

     Eu sentei-me no banco e esperei o metro, olhando para a direita, de onde viria o comboio. Eu sabia que ele viria da direita, apesar de um casal de turistas se ter levantado ao ouvir o barulho ensurdecedor dos carris a chiar vindo da esquerda. Tu desenhavas, também sentado no banco, mesmo ao lado desse casal, que se sentava à minha direita.
     Começaste a desenhar-me, eu sei-o, e eu nunca olhei na direcção contrária. Antes me deixei ser desenhado por ti, que ora olhavas para o papel e mexias o lápis na sua face, ora olhavas de novo para mim e me lias as feições. Eu tinha a completa noção de estar a ser desenhado e talvez tu até soubesses que eu sabia que me desenhavas. Tive mesmo um arrepio na espinha quando o casal se levantou e se quedou imóvel, impedindo que o teu ângulo de visão me percepcionasse. Felizmente, eles sentaram-se pouco tempo depois, e eu acalmei.
     Tu continuaste a desenhar-me, os movimentos manuais cada vez mais rápidos, como se o desenho dependesse do momento da chegada do metro. Eu não virei a cara, reforço-o. E olhei-te também quando miravas apenas o papel. Também eu te desenhei na minha imaginação, sem papel nem lápis, impedido de te escrever ou pintar, mas criando-te ainda assim numa imagem icónica. Fiz-te uma vida, uma rotina, imaginei-te amigos e família, criei-te um emprego e dei-te também dores e prazeres, conferi-te tristezas e sorrisos, férias, noites sem dormir, retirei-te até as horas da manhã porque te pus a dormir profundamente até às duas da tarde.
     O comboio do metro veio, enfim. Entrámos na mesma carruagem e eu continei a olhar para ti. Poderia ter sido a inauguração de um romance, a situação inicial ou final de um conto, mas cedo reparei que já não me desenhavas. E a nossa história acabou aí.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

a crise não é de agora

      "Podemos considerar aquele grande poema nacional [Lusíadas], o canto do cisne de um povo heróico decadente, como o momento mais elevado daquela época curta mas magnífica. Poucos anos apenas após a conclusão do poema, a própria nação entrou em derrocada - uma dor a que o próprio poeta, já idoso, não sobreviveria por muito tempo - e aquela passou a existir desde então, de certa forma, só nesta obra, na qual um espírito rico e talentoso adornou e eternizou tão magnificamente a sua glória."

Friedrich Schlegel (1772-1829).

A senhora dona Merkel partilha, provavelmente, da mesma opinião.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

a revolta das avestruzes aquáticas

            As avestruzes metiam a cabeça na água todos os dias e várias vezes ao dia. Eram, portanto, avestruzes aquáticas. Talvez fosse por não terem propriamente areia disponível, e entre a terra dos jardins e parques e a água do Tejo, resolveram mergulhar as cabecinhas no rio, que era a extensão de Lisboa, o espelho dos seus edifícios brancos e mnemónicos.

            O que as avestruzes mais gostavam de fazer era ler o seu horóscopo – era vê-las numa completa azáfama a correr pelas ruas e a invadir os cafés logo de manhãzinha e a ler o que o destino lhes reservava diariamente, semanalmente, para o mês todo ou até para o ano inteiro. Liam aquilo como se disso dependessem as suas vidas. Depois de sabido o futuro, iam ou não meter as cabeças na água ao fim do dia, imediatamente após o trabalho.

            Havia também avestruzes da socielite – os talkshows das avestruzes, onde outras aves mais pobres iam contar as suas terríveis histórias de vida, sempre com um balde cheio de água ao pé das cadeiras; o noticiário apresentado por uma avestruz que num tom indiferente ia recitando o que de novo ou velho se ia passando no país; e as avestruzes contavam também com as telenovelas. Estas últimas só podiam ser vistas com múltiplos baldes cheios de água ao pé, eram para a família toda e ninguém podia arriscar a não afundar a cabecinha naqueles momentos mais tensos, de suspense ou de puro terror e miséria.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

epístola

Havia ainda as cartas na época onde não era suposto haver sequer escrita com tinta e papel. Alguém me lembrou de que ler um postal ou um texto escrito à mão e demorado pelas horas que a física permite é mais valioso do que uma mensagem electrónica instantânea. E eu demorei, como as cartas, eu demorei a perceber o abismo que há entre esses dois tipos de comunicação diferentes - as cartas permitem uma objectivação corpórea das lembranças, são a prova palpável das saudades ou do amor ou da morte. São, em suma, o desenho que a linguagem escrita tão bem consegue fazer dessa energia invisível que nos une às pessoas de quem gostamos. As cartas ficam, amarelecidas ou rasgadas, enquanto nós envelhecemos, ficam de uma forma ou de outra intactas à medida que o nosso corpo já não cabe na imagem que uma fotografia anexada mostra - as cartas eternizam também os sentimentos mutáveis ou eternos que a um momento ou outro manifestamos. Podem ficar para sempre encerradas numa gaveta velha e difícil de abrir. Mas da mesma forma que não são tão imediatas como uma mensagem electrónica, também não são tão facilmente eliminadas ou simplesmente ignoradas. As cartas, devíamos todos sabê-lo, as cartas são a fundamentação epistolar das relações, da memória, do tempo e da vida - são o que resta se o abandono na velhice nos abraça ou o que sobra de uma vida linear quebrada pelas pausas entre a escrita e a recepção desses mesmos textos, tão fundamentais.