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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Natal

Pedi um porco ao Pai Natal
e só me saíram pérolas.
Fiquei como um palácio
perante um burro.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Close-up


Que tudo tem um tempo, sabemo-lo. Há coisas que
pertencem somente a um determinado momento e que
se não forem feitas ou apreciadas nesse espaço de tempo
já não fazem sentido algum. 

Baixa o aborrecimento
ou o desinteresse
ou simplesmente
a indiferença.

A beleza das coisas não é apenas efémera, por exemplo,
é também parte de uma certa duração de análise. Se não for
apreciada ou experimentada no tempo em que é
redundantemente bela,
foge, parte-se, deforma-se. É como fazer
um close up numa fotografia ou numa pintura:

os pequenos detalhes da imperfeição aparecem
mais nítidos e destroem o conjunto. 

Aí entra o "-ex", prefixo temporal:
ex-belo, ex-mulher, ex-vivo. 

Há um momento para tudo e há
a ânsia de consumir algo nesse
tempo onde isso seria perfeito.
Fora dele não faz sentido.

Todos somos crianças que querem muito
um brinquedo ou um chocolate quando não podemos,
por todas as razões, tê-los,
todos somos as mesmas crianças
que rapidamente se desinteressam pelo mesmo
brinquedo ou chocolate quando, mais tarde,
no-los dão.
Todos somos Madames Bovary.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

eternidade

Alfa: E dizer-te tudo, tudo, tudo, 
Ómega: Sentir tudo de todas formas,
Alfa: Rasgar-te a pele aos bocadinhos enquanto te acaricio os mamilos, 
Ómega: Foder-te por trás enquanto choro por seres tão bonito, 
Alfa: Olhar-te nos olhos enquanto me venho dentro de ti, 
Ómega: Mamar-te, roçar os meus dedos ao de leve na tua barriga de pele fresca e lisa,
Alfa: Sentir o teu caralho a latejar enquanto te enfio um dedo no cu, 
Ómega: Ler-te um poema que fale de amor puro e estúpido, sorrir ao ver-te dormir, 
Alfa: Mandar-te contra a parede enquanto te protejo a cabeça com as mãos, 
Ómega: Subir a um altar contigo e dizer sim, sim, sim, 
Alfa: O mesmo sim, sim, sim que dizes tu ao te vires, 
Ómega: Olhar-te obsessivamente dormir como um anjo, 
Alfa: Cantar uma música foleira para ti enquanto te esfrego as costas com sabão, 
Ómega: Sentir-me culpado por olhar para outros e desejá-los, 
Alfa: Ver pornografia contigo enquanto batemos uma um ao outro, 
Ómega: Amar-te, amar-te, amar-te, 
Alfa: Chorar a tua possível morte, 
Ómega: Descobrir-te até já não me servires, 
Alfa: Nunca mais, 
Ómega: Chorar por já não te amar, 
Alfa: Apaixonar-me por um outro tu, 
Ómega: Repetir,
Alfa & Ómega: Meu Deus, será assim tanto pedir-te a eternidade?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

versus

     Eu direi que o meu sofrimento não interessa porque há gente a morrer à fome, tu dirás que não é possível medi-los, um e outro, equacioná-los numa mesma balança, eu perguntar-te-ei porquê, tu responderás que os problemas são relativizados perante um determinado contexto, que a fome inviabiliza todo e qualquer manifesto humano que não seja de completa entrega altruísta no sentido da sua destruição e erradicação, mas eu argumentarei que os meus problemas não são menores do que esses porque são meus, tu contra-atacarás que eu sou um fedelho burguês habituado ao conforto e à demasia, aí eu não terei argumentos suficientemente sólidos, mas nunca entenderei realmente o porquê de tantos revolucionários preocupados com o estado da Terra exercerem violência sobre os seus esposos e esposas ou serem pais ausentes ou filhos mal agradecidos, tu responderás que isso é em prol do bem comum e eu dir-te-ei que quero que o bem comum se foda porque nem Jesus nem Aristóteles nem o Che Guevara nem o John Lennon conseguiram mudar o mundo, o meu sofrimento não é equiparável ao sofrimento da fome e doença, mas pelo menos partilho a minha comida com todos aqueles que conheço, esta minha ação devia ser um efeito borboleta, se todos repetissem o gesto não haveria mal no mundo, e mais direi que talvez o mundo seja os cordões que mataram a Sarah Kane mas que ainda assim mereça salvação, acrescentarei peremptoriamente que o mundo devia ser a construção através do amor e que a única coisa perene e que nunca morre no mundo é o dinheiro, mas no fundo hei-de desabafar que não acredito na sua redenção e expurgação porque o instinto básico humano é a sobrevivência e não o altruísmo social.   

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

terramotos mnémicos

      Se o meu coração não me engana, engana, a terra treme debaixo dos nossos pés, o Gil Vicente cai sobre um pobre preto pedinte que caga contra o Teatro, talvez seja bom destruir tudo e derramar cimento sobre os destroços para nem criar raiz, a terra treme e o meu coração não me engana, vem aí o fim dos pilares soberbos prepotentes de sobremaneira erigidos sobre as cabeças burras dos cifrões, a mãezinha vai falecer não tarda nada, restarão as lajes idiotas dos heróis destruídos e afogados no mar, a terra treme debaixo dos meus pés, é o som dos cascos dos cavalos de guerra que trarão uma nova Tróia sem espadas nem mulheres objetificadas, caralho vem uma rajada que arrasará o orgulho de políticos-martelo que dormem em tendas porque o chão treme, não mais Portugal não mais Portugal não mais Portugal, Portugal, Porto Gales não, o mundo! o mundo! o mundo!, a terra treme debaixo dos nossos pés e aquele preto não morreu em vão, a merda dele a mesma merda de reis.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

(mis)dialogue

- It never really goes away, does it?
- Probably not, I don't know, I really don't.
- It's always in me, at all times, no matter how hard I try it stays here, it never goes away. No matter what I do I always end up in the same place, next to it, living with it, feeding it. I wish I could just get out of myself.
- You can't, pet, you can't - you're you also at all times.
- How do we cope, then?
- We don't. We get by, merely.
- It's all bullshit, really.
- Now, now, hush. Stop crying now. It ain't gonna help.
- It's just that there are times when I think I've done it, I've got rid of it, but then it comes back, worse then before and more intense.
- I know, and I wish I could tell you that it gets better with time, but it doesn't, really.
- I feel it everyday, every minute and second of my days: it's creeping inside, it dumbs and numbs me down. I've tried, God knows I have, to fight it and sometimes I think I've succeeded but then it all comes tumbling down again. I just don't know what to do with myself anymore.
- You could try new pills, you know?
- I'm sick of pills - all they do is make it worse. I hate them.
- But they're always coming up with new stuff, new drugs, you never know. I just wanna help you.
- I know and I'm sorry if I reacted like that. I'm just quite desperate.
- Don't be, you're still young and beautiful.
- I'm too sad to be beautiful.
- Don't be silly, love. You're still a very pretty flower.
- You're too good, my friend. But I know I'm not.
- You're not going to feel beautiful if you don't think you are.
- Do you think you are beautiful?
- No.
- There you are.
- I don't know what to say.
- I don't either. Let's go eat something, eat the pain away.
- Honey, you know we're never gonna be thin if we keep eating like this, right? No pill will help if we pig out ALL the time.
- Fuck it. This fat will never go away. I'm thinking McDonald's.
- Sounds good, I'm dying for a burger.

domingo, 2 de dezembro de 2012

no limiar


Foram breves as rosas e os encontros, fugazes
noites foram todas em que os corpos se separaram.
Fomos felizes?
Fomos por momentos alegres
até a conjunção dos abdominais indefinidos mostrar
a cor cinzenta dos dias que se iriam seguir.
Não foi possível o retorno, o retorno, o retorno,
o regresso incinerado por entre montes e musgo.

Fomos cavalos, raízes, pedras:
as formas geométricas de uma idade velha
que se esqueceu de contar os dias.

Foram breves as rosas e os encontros, fugazes
dias foram todos em que os olhos se desencontraram.
Ficámos cegos?
Ficámos num momento atordoados
ainda bêbados de amor ou sóbrios no spleen,
uma miríade de cores contrastantes, confusas.
Não pudemos a partida, partimos separados, partimos
os copos nas cabeças um do outro, sangrámos as paredes.

Fomos pássaros, facas, flores:
um vulcão à espera de implodir,
sabendo que era já velho demais para rebentar.


a meio caminho andado

     Um caralho de um frio de rachar, o termómetro a marcar um grau, eu com uma dorzinha leve na boca do estômago, náuseas estranhas (acho que era de estar em casa à lareira, demasiado perto do calor) e dor no pescoço de passar demasiado tempo ao computador a tentar encontrar quem estivesse disposto a fazer-me um broche. Estivera a ler Rubem Fonseca, não se admirem.

Saí à rua convicto de que não estava assim tanto frio, saí e antes meti um cigarro na orelha, bem sei que pareço um carpinteiro ou um trolha com a porcaria do cigarro na orelha, mas acredito que lá no fundo até dá algum estilo. Talvez eu seja simplesmente idiota.

      E magro, também sou magro. A minha mãe viu-me a escrever no teclado do computador, minutos antes de eu sair de casa, e como escrevo muito rapidamente, disse que gostava de escrever com esta velocidade toda. Respondi-lhe que provavelmente nunca iria conseguir e arrependi-me logo a seguir. Não sei porque respondo este tipo de coisas à minha mãe. Talvez porque ela pense constantemente que eu sofro de cancro no estômago ou na vesícula, que esteja na realidade a morrer desnutrido e emaciado. A verdade é que sou magro mas como o suficiente. Sinto-me inchado muitas vezes porque sou pseudo-anorético, nada mais. Gosto de ver ossos salientes.

    Mas saí de casa. O intuito era ou ser mamado até ao tutano, sugado até à secura, ou simplesmente caminhar. Calcei uns ténis baratos e infinitamente finos demais para aquele tempo, pus um cachecol leve ao pescoço, um casaco grosso, e lá fui eu. Eu gosto da roupa de inverno mas confesso que os casacos demasiado grossos tiram todo o sex appeal às pessoas. Parecem uma cambada de humpty dumpties, especialmente se usarem skinny jeans.

      Ah!, mas o cigarro na orelha. Procurei-o com os dedos (não uso luvas, também não estava assim tanto frio) e não o encontrei. Fiquei fodido, deve ter caído quando me baixei para calçar os ténis, e agora, que caralho, tinha de enrolar outro, mas mesmo não estando assim tanto frio para usar luvas, estava realmente algum frio e teria de ficar com as mãos ao relento durante alguns segundos. Decidi não fumar. Quase que me alegrei com a decisão porque estaria a poupar um prego aos meus pulmões e coração, mas na realidade eu estava literalmente a cagar-me para os meus pulmões e coração, só me interessava e importava a pele e os dentes, que são as coisas que se veem. É uma forma distorcida de hedonismo e de vaidade.

      Nunca pensei que fosse essa a noite em que morreria.

     Eu caminhava rapidamente arfando visivelmente sob o céu gelado e claro, o vapor do meu bafo mostrado pela luz dos poucos candeeiros daquela merda daquela aldeia onde vivia. Sempre odiei que dissessem que as aldeias conservam algo de mais puro e inocente do que as cidades, que as pessoas são mais simples e amáveis e bondosas. Tudo uma grandessíssima filha da putice de uma mentira. As pessoas são até mais mesquinhas, têm cabeças de metal, pensamentos mecanicistas, pequenos e largamente fabris e industriais, e cruzam os braços ao caminharem na rua, e têm cotão nos cabelos, criticam as roupas das pessoas que vão aos funerais, e acham que não ter as cortinas lavadas no dia do velório de um defunto parece mal. Caguei para as aldeias e para as vilas, sinceramente, e para a merda das vidas reduzidas a

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      E ainda assim morri. Numa aldeia e de uma forma não menos mecanicista. É que pouco depois da minha casa há uma ponte onde passa um rio muito estreito e sujo, que cheira ou a merda ou a sangue podre dos animais sacrificados no matadouro, rio acima. Não que eu seja vegetariano, não sou, não cheguei ao topo da cadeia alimentar para comer erva (ok, não tem que ver com isto, tem mais que ver com o facto de eu não querer perder massa muscular e detestar tudo o que seja soja).

Mas a estupidez da minha morte, esqueçam a ponte que não tem nada a ver com o assunto: ia eu, farto de não poder fumar, decidi enrolar um cigarro a andar para não morrer de frio. Nós os desta aldeia temos a mania de andar no meio da estrada. É até inconsciente. E devo ter estado mesmo no meio da estrada quando… Não, relaxem, seria fácil demais se eu tivesse sido simplesmente atropelado ou tivesse caído ao rio (já disse que a ponte não tem nada a ver com a história). É que enrolei o cigarro no meio da estrada, a caminhar. E parei para o acender. Aquela primeira passa é sempre a melhor, o fumo a entrar pelos corpos adentro, é uma sensação primitiva e orgásmica que não consigo explanar. Gosto mesmo muito de fumar. Mas a temperatura parecia ter descido uns graus valentes quando acendi o cigarro, e eu apressei o passo, ainda no meio da estrada. E foi então que aconteceu: umas pontadas no peito, o braço sem força, uma dor perfurante no centro do meu tórax (mais sentível para o lado esquerdo, o caralho do coração, claro), um aperto, um aperto, um aperto, uma pressão, um aperto. O meu passo começou a acalmar, o meu corpo finalmente a ceder a um cansaço repentino e bruto, o meu corpo a morrer, o meu corpo a quebrar perante o enfarte, o enfarte, o enfarte, estava a ter um enfarte, caí pesado sobre o chão, o cigarro rolou para a berma da estrada, eu no meio da estrada, puta que pariu, morrer no meio da estrada é prolongar a triste fama que as pessoas desta aldeia que detesto têm.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Fidelidade


     O pequeno cão abanava alegremente a cauda à medida que se ia aproximando, meio de lado, do rapazinho que o chamava. Não se conheciam, ainda. O rapaz chamara-o porque gostava de animais e aquele cão desconhecido, ainda quase cachorrinho, à deriva pela rua cativara-o. 

O cão aproximou-se enfim do rapazote e cheirou-lhe as mãos. Confiando, lambeu-lhe os dedos profusamente como se já o conhecesse ou quisesse muito que aquele fosse o seu novo dono. O rapaz retribuiu o gesto afagando-lhe a cabeça e o lombo, e o cão redobrou a velocidade com que abanava a cauda. Sentia-se satisfeito com aquele encontro e estava feliz porque o menino também se sentia feliz. 

O pai do rapaz não andava longe. Enquanto se ausentara para fazer uma série de recados, o menino havia ficado incumbido de esperar por ele perto do carro, naquele aldeamento em construção, numa rua nova mas deserta, como se fosse aquele o sítio onde um novo mundo estava para vir. E nesse novo mundo, rapaz e cão seriam os melhores amigos. 

Começaram a brincar juntos entre festas, saltos e lambidelas. O rapaz deitava-se no chão e deixava que o cão o lambesse ou pisasse com as pequenas patinhas, ou lhe mordesse levemente as roupas. Um pau no chão deu aso à ideia de o atirar para longe, onde o cãozinho o iria reaver e trazê-lo de volta para junto do seu novo amo. Antes que deixasse o menino tirar-lho da boca, ainda dava alguma luta, rosnando de excitação. O rapaz tinha apenas de exercer um pouco mais de força, sacudir o pau para a direita e para a esquerda e logo, com pouco esforço, lho retirava da prisão de dentes que era a sua boca de cachorro. 

E recomeçava a brincadeira, o rapaz atirava o pau para longe e o cão corria a recuperá-lo. Por vezes, o rapaz enganava o cão, fingindo atirar o brinquedo quando na realidade afinal o segurava na mão. O cão ainda corria um pouco mas logo se apercebia de que o dono ainda o tinha nas mãos. Outras vezes, o rapaz escondia o pau atrás das costas e mostrava muito rapidamente uma das mãos, vazia, e o cão soltava um latido feliz ou impaciente, e girava sobre si mesmo. Por fim, o rapaz lá atirava aquilo que poderia ser um osso, um disco de frisbee, um boneco de trapos ou mesmo até um pedaço de comida. Para o cão era tudo igual, sinónimo do novo e recente amor que desenvolvera por aquele humano, que lhe retribuía a fidelidade. E assim se passaram duas horas, o tempo alheado de si mesmo e suspenso num estado de perfeição absoluta que só se atinge na infância.

O rapaz olhou para o relógio a certa altura, a fim de verificar o tempo que ainda lhe restava com aquele cão. O pai não devia andar longe. Distraído, em vez de pegar o pau que estava no chão, pegou numa pedra cinzenta, dura e compacta como se esta estivesse à espera de ser achada. Ainda contemplou a pedra durante uns segundos, ouvindo o som da conversa entre o pai e outra pessoa, ao longe. Olhou para o cão já com um olhar mudado, diferente. O cão arfava com a língua de fora, abstraído daquela transformação e pronto a continuar a brincadeira, ainda que fosse repetida exaustivamente até ao fim dos dias. 

Tudo aconteceu como um raio de luz a cair sobre a terra. Num segundo o cão a arfar, no outro o cão a ganir e o rapaz, impávido e sereno, a olhá-lo com desprezo e superioridade. A pedra não causara danos externos no corpo do animal, mas o cão ganiu sonora e demoradamente, afastando-se com as pernas diminuídas e o rabo recolhido entre elas. O rapaz, não sabemos se arrependido ou não, chamou-o uma vez mais, como a pedir desculpa, e o cão regressou a medo. Desta vez demorou a lamber-lhe os dedos mas fê-lo à mesma, querendo acreditar que o menino lhe tinha acertado com a pedra sem querer. Mas o olhar do rapaz voltou a transformar-se e a pedra voltou a ser arremessada contra o pequenino corpo do cão, que se afastou uma vez mais a ganir e a coxear, não talvez porque tivesse alguma coisa partida, mas por causa do choque físico e emocional daquele ato inesperado. 

A voz do pai ouvia-se mais claramente e próxima, agora, e o rapaz ficou nervoso e inquieto. Aninhou-se e chamou uma vez mais o cão. Este não se mexeu perante o novo chamamento e manteve uma distância segura. O rapaz chamou uma outra vez, fazendo sons com os lábios e mexendo os dedos, aninhado numa posição acolhedora e recetiva. O cão vacilou e encetou um movimento na direção do rapaz, que se ergueu de novo, a pedra atrás das costas. O cão imobilizou-se num misto de desconfiança, curiosidade e estarrecimento. 

  A pedra voou e acertou o alvo segundos antes de o pai chegar junto do miúdo, que sacudia as mãos   enquanto, ao longe, o cão corria e dobrava uma esquina, ganindo. 

     “Ouves um cão a ganir?”, perguntou o pai ao filho com o olhar alerta.

     “Não, não consigo ouvir nada”, retribuiu o rapaz, entrando no carro. “Pai, sabes o que quero ser quando for grande?", o seu olhar agora indecisamente inocente ou cruel, olhando em frente a estrada e a esquina ao longe. "Veterinário.”

    O pai, sorrindo, afagou a cabeça do filho com uma ternura eterna. “É uma bela profissão”, disse-lhe enquanto enfiava a chave na ignição. Pôs o carro a trabalhar e os dois abandonaram aquele lugar que poderia ser o início de um novo mundo. As casas permaneceram em construção e a rua volveu-se de novo deserta.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

rewriting Jeff.

Too young to get stuck, too old to just fuck and leave.

poor man's Cummings

If on another's face your sweet hair lay,
I'll send him a little word, which is my lore:
Caress those dark strands of hair, and pray,
Pray they will linger there forevermore.

Then, I will lower my sullen face with a tear
And engulf all of my anxious hate,
And kill the birds that sing terribly with fear,
Kicking, cursing, wishing you'd suffer the same fate.

And if this should be, I say, if this should be:
You of my heart, run and hide from me.

sábado, 10 de novembro de 2012

a insustentável ubiquidade da memória


    Existiu uma vez um cântico o mais belo dos cânticos dizia liberdade liberdade não poderemos escutá-lo nunca mais o mundo agrilhoado aos papéis fictícios. 
    Saí à rua na urbe cinzenta o céu uma redoma de vidro búzio. Capitalizemos os esforços beligerantes este não é o meu mundo protestos. Mas havia no céu uma espécie de resposta de contemplação idiota as aves voando indiferentes aos discurso dos homens e das mulheres. Éramos uma espécie de confusão de túneis estreitos donde brotavam apenas o sangue mais puramente grosso e o húmus febril do chão já seco já sem vida já sem força.
    Lembramo-nos ainda de tudo dos acidentes e dos milhares e milhares de anos que se volveram até girarem completamente até ao agora. E o mundo gira todavia num inútil eritrograma que nunca dará ao tempo todos os glóbulos vermelhos que lhe deve. E o tempo cansou: passa agora apenas porque a terra gira e porque tem de passar o tempo nunca mais será nosso nem perfeito virámos-lhe as costas e sol virou autocombustante.
    Eu saí à rua como saio todos os dias e nada vi apenas as lânguidas pernas das pessoas alternadamente mexendo-se: um rio que quer ser mar mas cujas margens são demasiado estreitas. Vi como deviam ver todos a solidariedade de interesses como devia ser: nas pernas dos homens e das mulheres eu vi como tudo forçosamente tinha de ser e lembrei-me de tudo aquilo que não o é e de que o mundo feliz ou infelizmente pode apenas ser nada mais.  

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

a descida

     O primeiro contacto com o Diabo aconteceu numa noite quando contava os minutos até passar para o lado do sono. Falou comigo num tom muito corriqueiro, sentado num dos cantos do meu quarto. Como durmo com a música ligada, auscultadores nos ouvidos, bem sei que faz mal mas ajuda-me no tempo de espera entre o aborrecimento de ter de deliberadamente deitar-me e o desespero indiferente de o tempo andar e o sono não vir, como durmo com a música ligada, não consegui perceber, nesse momento, se o que ouvi foi do som que o meu leitor mp3 libertava ou se, como se veio a provar, fora alguma outra coisa exterior a esse meu mundo anquilosante.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

ἀγάπη, ἔρως, φιλία, στοργή


    Por teres saído, não haverá nunca cigarros suficientes nem a noite será enfim curta e o sono meu, saíste só, com as mãos unidas num só trémulo, e eu deixei-me quedado,
sentadocaladoestragadofalsamentecrescido
na crença nas asas que esse amor me deu. Agora as horas têm-te-me pregado aos meus olhos, és o rosto que me desperta de manhã ou me adormece como uma morte que creio ser a lembrança do vinho que tomo para te redesenhar nas minhas paredes, a meu gosto.
 
Pois seja: perco agora o meu medo de ti e desse amor que me fodeu.

para a Cecília Meireles, naufragando.

DETRITOS

Tive um sonho dentro dum navio
Morrendo sobre as ondas do mar
Despertei depois a meio da noite
e vi a lua pintando o negro mar

Os meus olhos viram ainda o céu aberto
como se fosse aquela uma noite transparente,
E o mar bravio uivava sob a luz da lua,
as ondas o espelho do meu brilho morrente

Naufragou então o navio naquele mar
E o meu sonho afogou-se na água pintada,
Sobraram os destroços do futuro perdido
E eu fechei os olhos à lua estagnada

Hei-de chorar por cada onda desse mar
Que morreu quebrada contra a água
Porque do meu sonho desfeito em mil gotas
Ficaram apenas restos de alegria e mágoa

E quando o mar acalmar e a lua se deitar,
verei a perfeição do desenho que resta:
o mar pintado de luz brilhante e lisa
e o meu sonho agora só memória funesta.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

siste viator

    As palavras de Mariana foram o primeiro despertar daquele pai para a nova realidade que acontecia naquela casa. Abriu lentamente a porta do quarto e um calor humedecido pelo suor e pelo esforço do sangue conservava um cheiro que tanto podia ser de morte como de vida. A luz fosca entrava pela janela da alcova e não iluminava mais do que parte do chão. Deitada na cama, Maria segurava ainda a bebé, que dormia nos seus braços. Marido e mulher olharam-se por momentos, cada um compreendendo os olhos do outro, e Maria fez sinal para que José segurasse a menina. Avançou silenciosamente para a cama e segurou a filha com o à vontade de quem não se comove com delicadezas nem se demove perante a banalidade da biologia.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o peso do mundo


"Os Ombros Suportam o Mundo"

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

a congestão


    Naquela noite, acordei com dificuldades respiratórias. Pensei que devia deixar de fumar porque sentia o meu tórax demasiado pequeno para os meus pulmões, como se eles estivessem inchados. Ainda estremunhado, desci as escadas que ligam o primeiro andar ao rés-do-chão e por momentos pensei que ia desmaiar. Pensei palavrões. 
    Cedo notei, no entanto, que o meu problema não era pulmonar: o meu estômago fazia um enchumaço na camisola do pijama, inchado que estava, e então comprimia as minhas costelas, pensei. E as dores no estômago, como se tivesse todo dobrado e encorrilhado, cheio de pregas. Aí pensei que podia fumar à vontade, quanto mais não fosse pelo apelo da decadência.
    Abri uma lata de coca cola, sempre achei que a coca cola é boa para provocar arrotos, que aliviam o estômago. E bebi coca cola às cinco da manhã. Ainda as dores. E dobrei-me eu de cócoras, apertando o estômago levemente, sem saber que estaria morto daí a 10 minutos. Deitei-me no chão e a congestão continuou. Os vómitos vieram finalmente e fiquei aliviado de início, sorrindo por trás das lágrimas que se formaram nos meus olhos devido ao esforço. Consegui levantar-me a custo e voltei a subir as escadas para ir à casa de banho.
    A morte veio-me de forma muito lesta. Tinha engolido um pouco do meu próprio vómito pelo canal errado e o arranque de tosse obrigou-me a parar a subida nas escadas. Tossi então de forma mais brusca e desequilibrei-me, caindo para trás de costas e escadas abaixo. O meu pescoço partido. A congestão. Eu tinha vinte e oito anos e morri.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

os quatro tempos de um momento



    Uma mulher, visivelmente deslocada, saiu do autocarro, os óculos de sol tapando-lhe substancialmente o rosto e o lenço zebrado cobrindo-lhe os cabelos, olhou em volta e permaneceu em seu lugar, ondulada pela brisa quente, após o som da viatura, morosa, ter desaparecido no espaço. Não se sabe quem esta mulher era, nem que vinha fazer à aldeia, tão desabituada a estranhos. A sua barriga de grávida parecia uma deformação perante o resto do corpo delicado, estreito. A mulher continuou silenciosa e quieta, olhando em volta, à procura de alguém ou de algo. As poucas pessoas que naquela rua se demoravam nos pensamentos, sentadas nos bancos públicos, observavam-na com alguma curiosidade e relutância. O sino da aldeia soava não longe dali e à última badalada a figura de vestido preto segurou com mais força a sua mala e principiou em caminhar em direcção à tasca.

    Entrando, o barulho dos choques eléctricos que eram a morte das moscas intimidou-a, assim como novos olhares por parte de alguns velhos, jogando cartas numa mesa ao centro. O dono do estabelecimento enxugava copos e chávenas mal lavados, e o cheiro da sala confundia-se com o fedor do bafo do diabo que assolava a aldeia nessa semana. A mulher sentiu-se desmaiar e susteve a respiração por segundos, pousando a mala no chão e apoiando a mão na porta. A sua gravidez não lhe permitia odores fortes, quanto mais nauseabundos como aquele. Mas havia, os seus óculos de sol impenetráveis pareciam dizer, havia assuntos prementes a tratar e nenhum tempo para quebras de tensão ou vómitos que demorassem o seu propósito naquele lugar esquecido. Os olhares dos homens ainda estavam estagnados na sua figura, e atravessar a sala era uma tarefa monstruosa, titânica, mas a mulher inspirou fundo e os seus saltos altos ecoaram na modorra da tasca. Poucos passos foram necessários até ao balcão, mas cada um deles era uma batida infinita e penosa, cada som uma repetição de outro som.

    Onde está Diógenes? Preciso de lhe falar. O dono da tasca permaneceu mudo, palito no canto da boca e um farrapo sujo no ombro, sem expressão alguma no rosto, como se aquela pergunta não fizesse sentido algum ou ele o não tivesse ouvido. A mulher tornou a perguntar onde estava Diógenes. Os homens que antes jogavam cartas e depois a olhavam continuavam olhando-a silenciosamente. Impaciente, a estranha bateu o pé no chão e ergueu a voz. Eu sei que você sabe onde ele está e eu preciso de lhe falar. O que a mulher olvidava era que a pessoa a quem se dirigia era um homem de muito poucas palavras e de muito lento raciocínio. As moscas morriam em cadeia e um dos homens da mesa levantou-se, deu um passo em direcção ao balcão e pediu um bagaço. De um só trago, o velho bebeu o líquido amarelado e disse, Diógenes está enlouquecendo e o padre ofereceu-lhe um canto na sacristia e uma cama, de onde não sai senão para olhar os pássaros no exterior. A mulher, perplexa, murmurou um obrigada quase imperceptivelmente, e virou costas. À soleira da porta virou-se outra vez para os homens e perguntou se Diógenes sabia que ela estava grávida. Nenhum dos homens respondeu. O silêncio interrompido pelas moscas e o barulho das coisas foi resposta suficiente para aquela estranha, forasteira, que pegou na sua mala e saiu da tasca a custo por carregar tanto peso consigo.

    Deambulou depois pela aldeia com as malas nas mãos, sem saber se havia de ficar ou partir. A noite caíra sobre a terra, e as estrelas, buracos por onde se podia vislumbrar o paraíso, não lhe marcavam o caminho. Como um pirilampo sem luz, não via o rumo que seguia e tomava. Ao pousar as malas, caiu também o desespero do deslocamento, da acutilância da noite e do peso de estar em busca de uma agulha num palheiro sem saber se a queria realmente encontrar. As suas pernas absorveram-lhe toda a ansiedade dos olhos olhando para dentro, e teve de sentar-se. Não tinha fome de comida nem sede de água. O objectivo da sua missão escondia-se cada vez mais coberto de um caos que lhe confundia todos os propósitos. Então, sob o luar e o terrível céu brilhante, a mulher não conseguiu chorar – antes entregou-se a um martírio autista que catatonicamente a destruía perante a treva resplandecente da noite.


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Adão e Alexandre


    Alexandre abraça-me e pousa as suas mãos nas minhas costas e nádegas, e incita-me a aumentar de ritmo. Masturbo-o concomitantemente, até que o levanto e o sento no meu colo. Os nossos movimentos convergem ao batermos um no outro. Seguro na sua cabeça, puxando-lhe o cabelo, e mordo-lhe o pescoço. Afasto-o um pouco de mim e concentro-me em penetrá-lo com cada vez mais intensidade. Olhamo-nos por momentos com a expressão de dor que é o orgasmo a gerar-se, espelhado em ambos os rostos roburizados. Venho-me dentro dele enquanto ele se vem também. Suspendemos o ritmo e ele cai sobre o meu peito, suspirando. Desprendemo-nos ainda arfando como cães e o cheiro a esperma invade o aroma da noite. A chuva inicia a sua queda e nós, deitados sobre as folhas do jardim, escutamos o contínuo pingar das bátegas cada vez mais grossas, esquecidos, durante este instante, do resto do mundo,  da degradação que o tempo trará aos nossos corpos, da eterna estupidez dos homens e do absurdo que é  a civilização, esquecemo-nos porque estamos, nesse momento,  esgotados, construídos. De lá de cima, Deus chora porque não sabe morrer.  

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

a solidão

    - Do corpo não lhe sabemos mais do que a morte, disse a mulher não sem esperança. 
   Ao mesmo tempo que lhe saíam as palavras da boca, brincava com uma moeda entre os dedos da mão esquerda e segurava um cigarro com a direita. O homem tinha apenas vagar para acenar afirmativa ou negativamente, assim, sem braços e com uma mordaça a impedir-lhe a fala. Dizia-se que o homem tinha ou nascido já assim, desbraçado, ou tinha cortado os próprios membros superiores em jeito de expiação. De que pecados, não o saberemos, ele apenas pedia à mulher para lhe retirar a mordaça quando precisava de comer e nunca falava. 
    Sentados à mesa, conversavam sem diálogo, habituados ao monólogo e à rotina. A mulher retirou a mordaça ao homem depois de terminar o cigarro e serviu-lhe a comida à boca. O homem mastigava lentamente, mais porque tinha de ser do que porque tivesse apetite. Aquele homem era o lixo de si mesmo, do que tinha sido, e dizia-se também que o seu pensamento, a sua alma - essa coisa tão bonita de tão sonhada - estavam num qualquer desterro auto imposto. Comia então o homem devagar e a mulher falava agora de coisas menos pneumáticas. 
    - Hoje o absurdo da coisa é que o gato adormeceu no sofá e vomitou-o todo. Não entendo os felinos: antes de se instalarem, passam quinze minutos a fazer o ninho com as patas, depois adormecem e vomitam a meio.
    Dir-se-ia que o homem nem a ouvia - era apenas um espectro sem braços, uma mancha humana deixada a esvaecer presa num corpo ridículo e abjecto. Ele sabia-o, ela sabia-o. Mas nenhum dos dois sabia que iam bater à porta daí a pouco e que a sua rotina iria ser alterada sem retorno.
   - A esta hora?, perguntou a mulher suspeitando. Pousou devagar a colher no prato, retirou o guardanapo do colo e pousou-o com delicadeza na mesa, não sem antes limpar a boca ao homem, ajeitou a saia, levantando-se, e foi abrir. 
    - Boa noite, disse uma voz ainda sem rosto. Posso pedir-lhe um copo de água?
    A mulher hesitava em responder e demorou algum tempo a produzir um som que fosse. O homem, sentado e sem braços, nem sequer havia voltado a cabeça para observar nem havia fingido interesse algum. 
    - Sim, disse por fim a mulher. Espere um segundo. Dirigiu-se rapidamente ao frigorífico, retirou uma garrafa de vidro cheia de água fresca e encheu um copo. Aqui tem, disse, entregando o copo à voz, que não agradeceu antes de beber nem no fim.
    A voz disse apenas boa noite, e o homem ouviu passos a afastarem-se. A mulher fechou a porta ainda com uma expressão de surpresa e incredulidade. Eles pensavam que estavam sozinhos no mundo. 


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O Globo Dourado do James Franco


Se o globo dourado do James Franco
for realmente dourado e circular
não me importaria de o limpar, 
o lustro puxando, sentado num banco,
vendo o sol a morrer e a noite emergindo,
sozinho, a sorrir como se o visse ao longe surgindo – 
Não o globo dourado, mas sim o James Franco. 

domingo, 23 de setembro de 2012

Heitor

Quando surgiu a que cedo desponta, a Aurora de róseos dedos,
foi então que o povo se reuniu em torno da pira do famoso Heitor.
Quando estavam já reunidos, todos em conjunto,
primeiro apagaram a pira fúnebre com vinho frisante,
tanto quanto sobre ela sobreviera a força do fogo; mas depois
os irmãos e os companheiros recolheram os brancos ossos,
carpindo, e abundantes lhes escorreram nas faces as lágrimas.
Colocaram os ossos numa arca dourada,
pondo por cima finas mantas de púrpura.
Depuseram-na depressa numa sepultura e por cima
amontoaram grandes pedras, bem cerradas.
Depressa ergueram o túmulo, com sentinelas por toda a parte,
não fossem antes de tempo atacar os Aqueus de belas cnémides.
Após terem erguido o túmulo, voltaram; e de seguida,
reunidos festejaram segundo o rito com um banquete
no palácio de Príamo, rei criado por Zeus.

E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos.

Ilíada,
Homero. Trad. Frederico Lourenço.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

partindo-se


LEMBRANÇA DE JOÃO ROIZ DE CASTEL'BRANCO

Não os meus olhos, senhora, mas os vossos,
eles são que partem às terras que não sei,
onde memória de mim nunca passou,
onde é escondido meu nome de segredo.

Se de trevas se fazem as distâncias,
e com elas saudades e ausências,
Olhos cegos me fiquem, e não mais
que esperar do regresso a luz que foi.

José Saramago.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

he was a friend of mine


“There is a loneliness that can be rocked. Arms crossed, knees drawn up, holding, holding on, this motion, unlike a ship's, smooths and contains the rocker. It's an inside kind--wrapped tight like skin. Then there is the loneliness that roams. No rocking can hold it down. It is alive. On its own. A dry and spreading thing that makes the sound of one's own feet going seem to come from a far-off place.”
― Toni Morrison, Beloved

domingo, 19 de agosto de 2012

heart, you are my heart.


i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate(for you are my fate,my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

E. E. Cummings, "i carry your heart with me"

on the eve of great things to happen

On the eve of great things to happen, at night, when one is overcome by the sensation that life is larger than life itself, at night, late night, there is always the feeling that the world is either going to end or the light of the day will bring one’s dreams to the realm of possibility and completion. And yet one goes to sleep to dream land and the circle comes to an end beginning again towards the end again, and that’s when the pain kicks in and the auto-da-fé takes place, witches burning and the smell of nothingness reeking through the air and up our nostrils, the day goes on unchanged and the night soon follows still tricking us into believing it will bring epiphany or liberation, while cunningly plotting its suicide over and over again, killing itself inside our skin and eyes, ending forever in a brutal cycle, the sheets smelling of sleep and sweat, and life unspoiled and intact, no debris and no comfort, on the eve of great things to happen.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

o homem sem emoções


      Estávamos, vamos imaginá-lo, num tempo sem demarcação histórica, sem presente nem passado, do futuro sabíamos apenas a raiva que lhe tínhamos, e num espaço sem limites físicos, sem um centro no universo. Essa era a época em que conheci o homem sem emoções. O mundo estava organizado de forma muito errática, mais do que errada. Do céu recebíamos o sol ou a chuva, como sempre tinha sido, mas sentíamos um peso que nunca havíamos experimentado antes, as pessoas moviam-se lentamente, ensimesmadas, os autocarros paravam morosos e os utentes entravam silenciosos, o metro já não rugia nos carris e dos governos pouco se esperava a não ser um suicídio em massa que finalmente desse o exemplo necessário. Tudo isto funcionava, no entanto, num plano congeminante que pouco tinha que ver com a esfera das possibilidades ou realidades.
        É importante que eu vá referindo ou vá revelando o zeitgeist de quando tudo se passou porque, repare, ainda que seja sempre a minha própria percepção do estado das coisas, não será de todo errado apontar para a humanidade a violência do pensamento em bando. Dito isto: duvido que esta forma de ver não fosse semelhante a uma parte significativa da população da altura. 

quinta-feira, 21 de junho de 2012

pergunta nenhuma e resposta alguma

     A futilidade é uma coisa que a todos diz respeito, de uma maneira ou de outra. A futilidade do romance, a futilidade dos óculos de sol ou até mesmo do nosso dever social em constante luta com o instinto hedonista. E, ainda assim, não somos todos egoístas nem egocêntricos. Uma boa pessoa não será nunca medida pelo sorriso nem a leveza e tom da voz, mas talvez apenas e somente pela capacidade de facilitar a vida do próximo, de a tornar mais vivível e, por consequência, menos ingrata. É que, vejamos e convenhamos, não há sentido algum no caminho desde o nosso nascimento até à nossa morte, com ou sem Deus ou deuses. O absurdo da coisa é indispensável a um relativo bom viver, penso eu. E, no entanto, sozinhos que estamos até agora neste universo de magnitude incontável e inimaginável, não estamos realmente sós mas uns com os outros, ainda que com os olhos maioritariamente postos no céu. Não digo nada de novo - mas reitero aqui que a única coisa que podemos algum dia almejar e de significativo atingir é essa mesma consciência do conjunto. Porque existe o amor e porque existe o apego, e porque existe o prazer e a tristeza, existe toda uma míriade de sentimentos e acções que nos dizem respeito e devem ser respeitados.    
     E, no entanto, passamos por mendigos todos os dias, damos até uma moeda, mas recomeçamos a nossa marcha e a vida daquela pessoa tem de ser esquecida, e é-o, de facto. Aí está o grande mal do mundo: a incoerência e a inevitabilidade do egocentrismo, a impossibilidade de não esmagar insectos com os nossos passos. Passamos e olhamos, mesmo se agirmos estaremos em falta com muitas outras causas e pessoas, por vezes esquecemos até aqueles que nos são mais chegados em prol de uma ideia que consideramos maior e que talvez até nem o seja.
     Mas, ainda assim, caminhamos porque temos de caminhar. Não podemos continuar. Continuamos. Não há nada mais que possamos fazer do que continuar. Esse é o nosso dever e é aí que devemos achar algum conforto. 

domingo, 13 de maio de 2012

the golden years

I never thought all this could backfire. I mean, I had blown my heart out with a single shot, but the more I shook my fists at myself, the more I was convinced my heart was not to blame. Truth is I had a hurricane in me that needed release, but I did not know how or had the means to set it free - and so that hurricane stripped me bare over and over again. To love so mighty a queen took its toll on my Christ consciousness and I became a whirlwind - full of sound and fury, equipped with such a stentorian voice that my own chest could not endure its mere volume. But, alas!, all lost, all lost. I shrank into a tiny wight creature, afraid of its own reflection. I never thought all this could backfire. But at least I wear my ruins well. These are my golden years.

terça-feira, 24 de abril de 2012

the spin of the world

Não poderia haver razão
no espaço liminal entre um desejo imenso
e a obsessão de um castelo que seja
a muralha contra qualquer invasão.

Nem no mar nem na terra nem no ar,
nunca haverá argumentos de sobeja
contra a crueldade do mundo enquanto
pudermos dar as mãos e enquanto eu caminhar

e ele girar.

Ao som dos tambores, ao sabor de um grito:
não haverá anéis suficientes no céu,
nem poços tão fundos no ar,
e eu não sucumbirei nunca a este mundo maldito

até ele parar de girar.


domingo, 22 de abril de 2012

remédios santos

"Eu esmuro o meu próprio peito."
"Eu arranho o meu pescoço."
"Eu desenho um corte na minha garganta com água fria"
"Eu molho os meus pulsos."

quarta-feira, 18 de abril de 2012

into the West, recycling

"(...)
Death closes all: but something ere the end,
Some work of noble note, may yet be done,
Not unbecoming men that strove with Gods.
The lights begin to twinkle from the rocks:
The long day wanes: the slow moon climbs: the deep
Moans round with many voices. Come, my friends,
'Tis not too late to seek a newer world.
Push off, and sitting well in order smite
The sounding furrows; for my purpose holds
To sail beyond the sunset, and the baths
Of all the western stars, until I die.
It may be that the gulfs will wash us down:
It may be we shall touch the Happy Isles,
And see the great Achilles, whom we knew
Though much is taken, much abides; and though
We are not now that strength which in old days
Moved earth and heaven; that which we are, we are;
One equal temper of heroic hearts,
Made weak by time and fate, but strong in will
To strive, to seek, to find, and not to yield."

Tennyson : Ulysses

segunda-feira, 16 de abril de 2012

a conversão de Diógenes ao Cinismo

       "Irremediavelmente, não sou um bicho do mato, sou eu, só um homem, nem homem ainda, tenho pêlos e esperma, mas sou não ainda uma pessoa como acho que devo ser, tenho-me até por maior inimigo de mim mesmo, quebrado e afectado, odeio quem não consigo deixar de ser, - e estes filhos da puta que já me vão pedir coisas aqui à minha frente, e eles sem culpa alguma do meu veneno, etc - acordo todos os dias a querer fugir de mim com se houvesse dois eus, e nenhum deles é o Fernando Pessoa (abençoado, que conseguiu ordenar o estilhaçado), não sei o que quero nem o que fazer para chegar lá, e lá não é lugar algum, é mais um estado fugaz, cínico, uma luz que surge de vez em quando, eu não sei fugir de onde estou nem quero ir para onde vou, porque tenho de ir, - querem vinho, Mateus, por sinal, rosé, e ainda me perguntam o meu preferido - e o estado da economia, grande merda a organização do mundo, há até um banco mundial concomitante à fome e à miséria e à doença e aos satélites no espaço, que palhaços fomos, fomos sendo e somos, fizemos deste planeta o maior martírio, não conseguimos parar agora, os mendigos dormindo na rua à noite, as mãos nojentas a descascar uma laranja, o asco, e ainda assim seguimos uma rota circular, que burros, etc, mas eu sou só um homem, não serei feliz enquanto houver uma criança a morrer de fome, mas não sou ainda uma pessoa, os meus pêlos e o meu esperma não podem saciar a humanidade."

Diógenes.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

estentóreo

Seria difícil medir com que força passam as nossas horas ou com que velocidade se move o espaço do teu suspiro ao meu ouvido. Mas tu vieste sempre a mim, inesperadamente, quebrando a rotina do teu corpo e da tua vontade.

domingo, 8 de abril de 2012

o meu cristo

A PAIXÃO

(para o meu tio Tónio)

Nunca mais te verei.
A terra cobriu-te o sol e os dias,
o teu sol e os nossos dias
Agora, entre os dedos das minhas mãos não te vejo no meu abraço
morto sem corpo, sem a luz que o tempo apaga.

Nunca mais te atirarei pedras.
Morreste-nos no verão cravejado de pedras
Que exibi no meu rosto.
Perdoa-me.
Perdoa-me as palavras no entardecer.

Deixo a tua ausência na minha ausência,
Não te posso mais imaginar.
Restará a laje e a humidade no teu retrato
E a continuação das tuas sementes
E eu parto porque o meu corpo já não suporta o teu peso.

Mas perdoa-me as palavras no entardecer.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

SEF

    Reza chegou a Lisboa depois de tudo ter colapsado em Itália e Espanha. Fugira de casa, esse lugar onde o leite das cabras alimenta montanhas mas não saceia sedes, fugira do seu país porque talvez tivesse de salvar uma irmã ou ajudar um pai, não o sabemos porque as causas das coisas nem sempre nos são claras ou passíveis de serem conhecidas. A verdade é que Reza fugira, correra, voara, conduzira e seguira dormindo em comboios e autocarros, percorrera mentalmente todo um Império Persa, a grandeza de quilómetros atravessara-se-lhe na memória que tantas vezes esquece e confunde, para ele a fuga fora uma titanomaquia, e, chegado a Itália, desmoronaram-se os deuses no seu corpo, a força dessas entidades antigas que velavam sobre o Irão e os iranianos esvaía-se-lhe como sangue de uma ferida aberta.

segunda-feira, 26 de março de 2012

when I fall I'll weep for happiness

"Warlord"

Achilles grieves. A soldier, weeping, seems
No less the hero - still delivers dreams.

No powder running down his face, but tears
In the dust. Not ardour in men's hearts, spears.

Who says Patroclus should have been a farmer
Or poet? Nothing left of him but armour -

Which is apt. Women should be kept as chattels
For bearing sons. Lovers for love and battles.

Men should philosophize and body-build.
They like to see their lovers kill, not killed.

Gregory Woods, May I Say Nothing.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Teseus de Cornwall

    Tu tocas guitarra ao fundo da sala, as costas gregas lembrando a conquista romana da Grã-Bretanha, loiro, penado, olvidante à minha cegasurdamuda atracção, ao fogo que tu, retrato fiel de Dorian Gray, provocas bem no fundo do meu sexo, touro enjaulado, tu tocas guitarra e eu vejo-te as costas, sendo que o flirt foi erradamente instigado e apontado, resta-me a raiva do que não posso ter, a tua pele e a tua idade, rabo liso e protuberante, que foda que eu te dava, rapaz.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

as saudades chinesas

    Lembro-me de ser pequeno e ir a restaurantes chineses. A comida agridoce a ser novidade, os pauzinhos, a colher de porcelana para a sopa, os empregados sorridentes, arroz chao chao, banana fa si. 
    No entanto, do que mais me lembro é a súbita pena que senti dessas pessoas de aspecto diferente, de língua diferente, que faziam tudo ao contrário de nós e que se mostravam, exóticos, ao Ocidente, encaixados por serem o outro. Eu não sabia exprimir-me como o sei agora e talvez a memória me esteja a atraiçoar ao escrever estas palavras, mas eu recordo com a força de um nó que aperta a garganta, recordo essas lágrimas que tive de conter ao imaginar e, de facto, ler (provavelmente apenas na minha cabeça) nos seus rostos a dor da distância que vai entre a China e Portugal, entre o Oriente e o Ocidente, entre o uso de pauzinhos e o uso de um garfo e de uma faca. E lembro-me apenas dessa dor que eu sentia por eles. E da pena que me davam por eu achar que eram muito sozinhos. 
    E de tentar agradecer ao máximo e dar-lhes o que podia: um sorriso que valesse as saudades que em chinês porventura sentissem.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

o desenhador

     Eu sentei-me no banco e esperei o metro, olhando para a direita, de onde viria o comboio. Eu sabia que ele viria da direita, apesar de um casal de turistas se ter levantado ao ouvir o barulho ensurdecedor dos carris a chiar vindo da esquerda. Tu desenhavas, também sentado no banco, mesmo ao lado desse casal, que se sentava à minha direita.
     Começaste a desenhar-me, eu sei-o, e eu nunca olhei na direcção contrária. Antes me deixei ser desenhado por ti, que ora olhavas para o papel e mexias o lápis na sua face, ora olhavas de novo para mim e me lias as feições. Eu tinha a completa noção de estar a ser desenhado e talvez tu até soubesses que eu sabia que me desenhavas. Tive mesmo um arrepio na espinha quando o casal se levantou e se quedou imóvel, impedindo que o teu ângulo de visão me percepcionasse. Felizmente, eles sentaram-se pouco tempo depois, e eu acalmei.
     Tu continuaste a desenhar-me, os movimentos manuais cada vez mais rápidos, como se o desenho dependesse do momento da chegada do metro. Eu não virei a cara, reforço-o. E olhei-te também quando miravas apenas o papel. Também eu te desenhei na minha imaginação, sem papel nem lápis, impedido de te escrever ou pintar, mas criando-te ainda assim numa imagem icónica. Fiz-te uma vida, uma rotina, imaginei-te amigos e família, criei-te um emprego e dei-te também dores e prazeres, conferi-te tristezas e sorrisos, férias, noites sem dormir, retirei-te até as horas da manhã porque te pus a dormir profundamente até às duas da tarde.
     O comboio do metro veio, enfim. Entrámos na mesma carruagem e eu continei a olhar para ti. Poderia ter sido a inauguração de um romance, a situação inicial ou final de um conto, mas cedo reparei que já não me desenhavas. E a nossa história acabou aí.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

a crise não é de agora

      "Podemos considerar aquele grande poema nacional [Lusíadas], o canto do cisne de um povo heróico decadente, como o momento mais elevado daquela época curta mas magnífica. Poucos anos apenas após a conclusão do poema, a própria nação entrou em derrocada - uma dor a que o próprio poeta, já idoso, não sobreviveria por muito tempo - e aquela passou a existir desde então, de certa forma, só nesta obra, na qual um espírito rico e talentoso adornou e eternizou tão magnificamente a sua glória."

Friedrich Schlegel (1772-1829).

A senhora dona Merkel partilha, provavelmente, da mesma opinião.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

a revolta das avestruzes aquáticas

            As avestruzes metiam a cabeça na água todos os dias e várias vezes ao dia. Eram, portanto, avestruzes aquáticas. Talvez fosse por não terem propriamente areia disponível, e entre a terra dos jardins e parques e a água do Tejo, resolveram mergulhar as cabecinhas no rio, que era a extensão de Lisboa, o espelho dos seus edifícios brancos e mnemónicos.

            O que as avestruzes mais gostavam de fazer era ler o seu horóscopo – era vê-las numa completa azáfama a correr pelas ruas e a invadir os cafés logo de manhãzinha e a ler o que o destino lhes reservava diariamente, semanalmente, para o mês todo ou até para o ano inteiro. Liam aquilo como se disso dependessem as suas vidas. Depois de sabido o futuro, iam ou não meter as cabeças na água ao fim do dia, imediatamente após o trabalho.

            Havia também avestruzes da socielite – os talkshows das avestruzes, onde outras aves mais pobres iam contar as suas terríveis histórias de vida, sempre com um balde cheio de água ao pé das cadeiras; o noticiário apresentado por uma avestruz que num tom indiferente ia recitando o que de novo ou velho se ia passando no país; e as avestruzes contavam também com as telenovelas. Estas últimas só podiam ser vistas com múltiplos baldes cheios de água ao pé, eram para a família toda e ninguém podia arriscar a não afundar a cabecinha naqueles momentos mais tensos, de suspense ou de puro terror e miséria.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

epístola

Havia ainda as cartas na época onde não era suposto haver sequer escrita com tinta e papel. Alguém me lembrou de que ler um postal ou um texto escrito à mão e demorado pelas horas que a física permite é mais valioso do que uma mensagem electrónica instantânea. E eu demorei, como as cartas, eu demorei a perceber o abismo que há entre esses dois tipos de comunicação diferentes - as cartas permitem uma objectivação corpórea das lembranças, são a prova palpável das saudades ou do amor ou da morte. São, em suma, o desenho que a linguagem escrita tão bem consegue fazer dessa energia invisível que nos une às pessoas de quem gostamos. As cartas ficam, amarelecidas ou rasgadas, enquanto nós envelhecemos, ficam de uma forma ou de outra intactas à medida que o nosso corpo já não cabe na imagem que uma fotografia anexada mostra - as cartas eternizam também os sentimentos mutáveis ou eternos que a um momento ou outro manifestamos. Podem ficar para sempre encerradas numa gaveta velha e difícil de abrir. Mas da mesma forma que não são tão imediatas como uma mensagem electrónica, também não são tão facilmente eliminadas ou simplesmente ignoradas. As cartas, devíamos todos sabê-lo, as cartas são a fundamentação epistolar das relações, da memória, do tempo e da vida - são o que resta se o abandono na velhice nos abraça ou o que sobra de uma vida linear quebrada pelas pausas entre a escrita e a recepção desses mesmos textos, tão fundamentais.

sábado, 28 de janeiro de 2012

a anarquia dos pequenos terramotos


Uma vez vi mesmo um preto a cagar contra a parede do Teatro Nacional Dona Maria em plena luz do dia, e arrisquei-me, perdoem-me a audácia e má-fé, arrisquei-me a ponderar se aquilo seria uma prova da maior humilhação a que um ser humano pode ser sujeitado ou se, por outro lado, seria uma acção de conquista total e maior de liberdade. Rabo ao léu, o ar quente como o Agosto assim o ditava, e a merda contra a intelectualidade e a arte, contra aquele edifício que era consequência da ordem, história e renascimento do país. Mesmo ali, sem tirar nem pôr, o homem cagou para o império.  E o Gil Vicente, especado lá em cima, haveria de rir-se se essa fosse a verdade, se o homem estivesse mesmo afirmando o seu desprezo por tudo o que aquele teatro simbolizava e a declarar a sua liberdade, a última liberdade, a anarquia de deixar a sua marca fedorenta contra a parede branca do esplendor dramático de Portugal.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pedro

Foi há tanto tempo. 
Foi há tanto tempo que me sentei pela primeira vez naquela que seria a minha definitiva cadeira na escola primária, em frente àquela eterna mesa. Enormes, as duas coisas moldaram o meu corpo durante quatro anos e depois de transitar para o básico creio com a força da vida que a marca das minhas costas, rabo, pernas e cotovelos ainda permanecem naqueles objectos. Verdade, talvez tenham sido substituídas, a cadeira e a mesa, talvez tenham sido queimadas, talvez. Eram enormes, maiores e mais assustadoras do que alguma coisa que até altura tinha visto. 
Eu estava muito nervoso no primeiro dia de escola. Dizer adeus à minha mãe foi tirarem-me o mundo enforcando-me o estômago. Eu tremia, tremia tanto, tremia por dentro, chorava cântaros sem verter uma lágrima só porque me tinham ensinado a não chorar em frente a estranhos. Foi então que conheci o meu primeiro e melhor amigo de escola. Ele sentou-se a meu lado porque tinha visto aquele lugar vago. Lembro-me dessas palavras e da energia e felicidade dele. 
Com o passar dos anos, desenvolvemos até um aperto de mão personalizado que só nós conhecíamos. Jogávamos consola e estudávamos juntos, alternadamente em minha ou em casa dele.
Não sei o que nos aconteceu - separámo-nos a um determinado momento e os anos passaram, conhecemos outros amigos, vivemos outras vidas, os nossos corpos cresceram enquanto as nossas cadeiras e mesa da primária mingavam. 
Há quanto tempo foi que tudo aconteceu?
reencontro.
Permanecemos puros um com o outro, no entanto, e reencontrámos o aperto de mão. Felizes de sabermos que ainda temos tantos anos juntos pela frente. 
E que as cadeiras e a mesa se conservem para sempre maiores do que nós.