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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Fidelidade


     O pequeno cão abanava alegremente a cauda à medida que se ia aproximando, meio de lado, do rapazinho que o chamava. Não se conheciam, ainda. O rapaz chamara-o porque gostava de animais e aquele cão desconhecido, ainda quase cachorrinho, à deriva pela rua cativara-o. 

O cão aproximou-se enfim do rapazote e cheirou-lhe as mãos. Confiando, lambeu-lhe os dedos profusamente como se já o conhecesse ou quisesse muito que aquele fosse o seu novo dono. O rapaz retribuiu o gesto afagando-lhe a cabeça e o lombo, e o cão redobrou a velocidade com que abanava a cauda. Sentia-se satisfeito com aquele encontro e estava feliz porque o menino também se sentia feliz. 

O pai do rapaz não andava longe. Enquanto se ausentara para fazer uma série de recados, o menino havia ficado incumbido de esperar por ele perto do carro, naquele aldeamento em construção, numa rua nova mas deserta, como se fosse aquele o sítio onde um novo mundo estava para vir. E nesse novo mundo, rapaz e cão seriam os melhores amigos. 

Começaram a brincar juntos entre festas, saltos e lambidelas. O rapaz deitava-se no chão e deixava que o cão o lambesse ou pisasse com as pequenas patinhas, ou lhe mordesse levemente as roupas. Um pau no chão deu aso à ideia de o atirar para longe, onde o cãozinho o iria reaver e trazê-lo de volta para junto do seu novo amo. Antes que deixasse o menino tirar-lho da boca, ainda dava alguma luta, rosnando de excitação. O rapaz tinha apenas de exercer um pouco mais de força, sacudir o pau para a direita e para a esquerda e logo, com pouco esforço, lho retirava da prisão de dentes que era a sua boca de cachorro. 

E recomeçava a brincadeira, o rapaz atirava o pau para longe e o cão corria a recuperá-lo. Por vezes, o rapaz enganava o cão, fingindo atirar o brinquedo quando na realidade afinal o segurava na mão. O cão ainda corria um pouco mas logo se apercebia de que o dono ainda o tinha nas mãos. Outras vezes, o rapaz escondia o pau atrás das costas e mostrava muito rapidamente uma das mãos, vazia, e o cão soltava um latido feliz ou impaciente, e girava sobre si mesmo. Por fim, o rapaz lá atirava aquilo que poderia ser um osso, um disco de frisbee, um boneco de trapos ou mesmo até um pedaço de comida. Para o cão era tudo igual, sinónimo do novo e recente amor que desenvolvera por aquele humano, que lhe retribuía a fidelidade. E assim se passaram duas horas, o tempo alheado de si mesmo e suspenso num estado de perfeição absoluta que só se atinge na infância.

O rapaz olhou para o relógio a certa altura, a fim de verificar o tempo que ainda lhe restava com aquele cão. O pai não devia andar longe. Distraído, em vez de pegar o pau que estava no chão, pegou numa pedra cinzenta, dura e compacta como se esta estivesse à espera de ser achada. Ainda contemplou a pedra durante uns segundos, ouvindo o som da conversa entre o pai e outra pessoa, ao longe. Olhou para o cão já com um olhar mudado, diferente. O cão arfava com a língua de fora, abstraído daquela transformação e pronto a continuar a brincadeira, ainda que fosse repetida exaustivamente até ao fim dos dias. 

Tudo aconteceu como um raio de luz a cair sobre a terra. Num segundo o cão a arfar, no outro o cão a ganir e o rapaz, impávido e sereno, a olhá-lo com desprezo e superioridade. A pedra não causara danos externos no corpo do animal, mas o cão ganiu sonora e demoradamente, afastando-se com as pernas diminuídas e o rabo recolhido entre elas. O rapaz, não sabemos se arrependido ou não, chamou-o uma vez mais, como a pedir desculpa, e o cão regressou a medo. Desta vez demorou a lamber-lhe os dedos mas fê-lo à mesma, querendo acreditar que o menino lhe tinha acertado com a pedra sem querer. Mas o olhar do rapaz voltou a transformar-se e a pedra voltou a ser arremessada contra o pequenino corpo do cão, que se afastou uma vez mais a ganir e a coxear, não talvez porque tivesse alguma coisa partida, mas por causa do choque físico e emocional daquele ato inesperado. 

A voz do pai ouvia-se mais claramente e próxima, agora, e o rapaz ficou nervoso e inquieto. Aninhou-se e chamou uma vez mais o cão. Este não se mexeu perante o novo chamamento e manteve uma distância segura. O rapaz chamou uma outra vez, fazendo sons com os lábios e mexendo os dedos, aninhado numa posição acolhedora e recetiva. O cão vacilou e encetou um movimento na direção do rapaz, que se ergueu de novo, a pedra atrás das costas. O cão imobilizou-se num misto de desconfiança, curiosidade e estarrecimento. 

  A pedra voou e acertou o alvo segundos antes de o pai chegar junto do miúdo, que sacudia as mãos   enquanto, ao longe, o cão corria e dobrava uma esquina, ganindo. 

     “Ouves um cão a ganir?”, perguntou o pai ao filho com o olhar alerta.

     “Não, não consigo ouvir nada”, retribuiu o rapaz, entrando no carro. “Pai, sabes o que quero ser quando for grande?", o seu olhar agora indecisamente inocente ou cruel, olhando em frente a estrada e a esquina ao longe. "Veterinário.”

    O pai, sorrindo, afagou a cabeça do filho com uma ternura eterna. “É uma bela profissão”, disse-lhe enquanto enfiava a chave na ignição. Pôs o carro a trabalhar e os dois abandonaram aquele lugar que poderia ser o início de um novo mundo. As casas permaneceram em construção e a rua volveu-se de novo deserta.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

rewriting Jeff.

Too young to get stuck, too old to just fuck and leave.

poor man's Cummings

If on another's face your sweet hair lay,
I'll send him a little word, which is my lore:
Caress those dark strands of hair, and pray,
Pray they will linger there forevermore.

Then, I will lower my sullen face with a tear
And engulf all of my anxious hate,
And kill the birds that sing terribly with fear,
Kicking, cursing, wishing you'd suffer the same fate.

And if this should be, I say, if this should be:
You of my heart, run and hide from me.

sábado, 10 de novembro de 2012

a insustentável ubiquidade da memória


    Existiu uma vez um cântico o mais belo dos cânticos dizia liberdade liberdade não poderemos escutá-lo nunca mais o mundo agrilhoado aos papéis fictícios. 
    Saí à rua na urbe cinzenta o céu uma redoma de vidro búzio. Capitalizemos os esforços beligerantes este não é o meu mundo protestos. Mas havia no céu uma espécie de resposta de contemplação idiota as aves voando indiferentes aos discurso dos homens e das mulheres. Éramos uma espécie de confusão de túneis estreitos donde brotavam apenas o sangue mais puramente grosso e o húmus febril do chão já seco já sem vida já sem força.
    Lembramo-nos ainda de tudo dos acidentes e dos milhares e milhares de anos que se volveram até girarem completamente até ao agora. E o mundo gira todavia num inútil eritrograma que nunca dará ao tempo todos os glóbulos vermelhos que lhe deve. E o tempo cansou: passa agora apenas porque a terra gira e porque tem de passar o tempo nunca mais será nosso nem perfeito virámos-lhe as costas e sol virou autocombustante.
    Eu saí à rua como saio todos os dias e nada vi apenas as lânguidas pernas das pessoas alternadamente mexendo-se: um rio que quer ser mar mas cujas margens são demasiado estreitas. Vi como deviam ver todos a solidariedade de interesses como devia ser: nas pernas dos homens e das mulheres eu vi como tudo forçosamente tinha de ser e lembrei-me de tudo aquilo que não o é e de que o mundo feliz ou infelizmente pode apenas ser nada mais.  

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

a descida

     O primeiro contacto com o Diabo aconteceu numa noite quando contava os minutos até passar para o lado do sono. Falou comigo num tom muito corriqueiro, sentado num dos cantos do meu quarto. Como durmo com a música ligada, auscultadores nos ouvidos, bem sei que faz mal mas ajuda-me no tempo de espera entre o aborrecimento de ter de deliberadamente deitar-me e o desespero indiferente de o tempo andar e o sono não vir, como durmo com a música ligada, não consegui perceber, nesse momento, se o que ouvi foi do som que o meu leitor mp3 libertava ou se, como se veio a provar, fora alguma outra coisa exterior a esse meu mundo anquilosante.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

ἀγάπη, ἔρως, φιλία, στοργή


    Por teres saído, não haverá nunca cigarros suficientes nem a noite será enfim curta e o sono meu, saíste só, com as mãos unidas num só trémulo, e eu deixei-me quedado,
sentadocaladoestragadofalsamentecrescido
na crença nas asas que esse amor me deu. Agora as horas têm-te-me pregado aos meus olhos, és o rosto que me desperta de manhã ou me adormece como uma morte que creio ser a lembrança do vinho que tomo para te redesenhar nas minhas paredes, a meu gosto.
 
Pois seja: perco agora o meu medo de ti e desse amor que me fodeu.

para a Cecília Meireles, naufragando.

DETRITOS

Tive um sonho dentro dum navio
Morrendo sobre as ondas do mar
Despertei depois a meio da noite
e vi a lua pintando o negro mar

Os meus olhos viram ainda o céu aberto
como se fosse aquela uma noite transparente,
E o mar bravio uivava sob a luz da lua,
as ondas o espelho do meu brilho morrente

Naufragou então o navio naquele mar
E o meu sonho afogou-se na água pintada,
Sobraram os destroços do futuro perdido
E eu fechei os olhos à lua estagnada

Hei-de chorar por cada onda desse mar
Que morreu quebrada contra a água
Porque do meu sonho desfeito em mil gotas
Ficaram apenas restos de alegria e mágoa

E quando o mar acalmar e a lua se deitar,
verei a perfeição do desenho que resta:
o mar pintado de luz brilhante e lisa
e o meu sonho agora só memória funesta.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

siste viator

    As palavras de Mariana foram o primeiro despertar daquele pai para a nova realidade que acontecia naquela casa. Abriu lentamente a porta do quarto e um calor humedecido pelo suor e pelo esforço do sangue conservava um cheiro que tanto podia ser de morte como de vida. A luz fosca entrava pela janela da alcova e não iluminava mais do que parte do chão. Deitada na cama, Maria segurava ainda a bebé, que dormia nos seus braços. Marido e mulher olharam-se por momentos, cada um compreendendo os olhos do outro, e Maria fez sinal para que José segurasse a menina. Avançou silenciosamente para a cama e segurou a filha com o à vontade de quem não se comove com delicadezas nem se demove perante a banalidade da biologia.