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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

da antecipação do natal e da adília lopes

SMS

               (para o José Pedro Magalhães)

O Menino e o Pai
não me deram o James Franco
pelo Natal
deram-me antes a cruz
de o não ter

Vi a vaca e o boi
à volta do Menino
e a Virgem
vestia cuecas provocantes
para seduzir o
Pai

Não te quero
nunca te quererei
(não sei porquê, Senhor)

A minha vida
ainda não é um livro
não é livre
e não vive

Queria chorar
mas não chove
e Verlaine aborrece-me

ou então:
o Natal está a chegar
e eu sem ninguém
para fornicar

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

a poesia não existe.

A noite
A noite veio de dentro, começou a surgir do interior 
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. 
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias 
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros. 
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las 
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, 
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia 
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama 
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, 
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das 
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer 
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que 
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz 
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos 
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo 
a treva nasalada.

in Luís Miguel Nava, Vulcão I

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

everything invaded

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.



“A Faca Não Corta o Fogo”, Súmula & Inédita (2008)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Morreste-me.

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

as regras da atração

­ “Four shots of tequila, please!”

            Pediam bebidas num bar do Bairro Alto, quatro, as bebidas e as pessoas. Tinham-se conhecido num albergue no centro de Lisboa. Estavam num grupo maior, mas, distanciados, juntavam-se assim porque assim acontecera.

Tinham uma semana juntos, numa semana roça-se apenas os pelos da pele de alguém, mas sente-se mais esses toques pela urgência do tempo e da intensidade do contacto. Drew pagou os quatro shots e olharam-se entre risos e queixas do sabor e força do álcool ingerido. – “I think we’re going to regret these tomorrow”, disse Michelle, e Pedro acenou que sim, acrescentando no entanto, – “ Oh well, we should just have fun, we’ve only got one week to have fun together.” Pedro era o único português do grupo, rececionista no albergue onde se haviam encontrado todos. – “I think we should have another one of those together – I’m buying!” Quem fez a proposta foi Jasmine e sem aguardar pela resposta pediu os quatro shots. Imediatamente após o pedido, os seus olhos fixaram-se nos de Pedro, que desviou o olhar automaticamente. Quando voltou a olhar para Jasmine, o rosto dela era um sorriso tímido e já um pouco embriagado. Sorriu também como pôde e voltou a desviar o olhar na direção de Drew. Drew era alto e loiro, britânico londrino. “So, how come your name is the same as Drew Barrimore?”, inquiriu Michelle verdadeiramente confusa. “Well, in English my name works for both men and women. But I guess it’s kinda funny.” Michelle riu-se e concordou, acendendo um cigarro. “What do you think, Pedro?” “About what?”, respondeu Pedro, parecendo acordar de um transe. “My name – is it weird that it’s also a girl’s name?” “I don’t think it’s weird, that happens in my language too.” “See?”, exclamou Drew para Michelle, “he doesn’t think it’s weird.” “It is weird to me”, sorriu Michelle. E Drew voltou a olhar para Pedro com um olhar que este não sabia descortinar.

***

sábado, 19 de novembro de 2011

para a Hilda Hilst

Nunca estarei nos livros.
Jamais me procures nas páginas ou versos,
cemitérios de palavras.
Eu sou parte das galinhas que alimento
a milho, couve e faca,
sou a cruz falada da nossa raça
encerrada no fátuo trono
da adonia.
E se subir um dia aos céus,

Procura-me na chuva ou no rosa do amanhecer ,
nunca junto a pai algum.
Hei-de ser a praia, o gato ou a fotografia.
O tempo perdido procurado.

sábado, 12 de novembro de 2011

POESIA XXII

Não me procures ali
onde os vivos visitam
os chamados mortos.
Procura-me dentro das grandes águas.
Nas praças,
num fogo coração,
entre cavalos, cães,
nos arrozais, no arroio,
ou junto aos pássaros
ou espelhada num outro alguém,
subindo um duro caminho.

Pedra, semente, sal, passos da vida.
Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Concurso Conte Connosco.

Acabei de submeter um conto meu para um concurso. Leiam, votem e participem. Também podem ganhar prémios. Aqui está o endereço: http://www.conteconnosco.com/trabalho-detalhe.php?id=606

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

o rapaz, a morte.

Havia um rapaz novo, já não tão novo quanto a prematuridade permitia, essa já tinha sido, havia um rapaz que, jovem ainda não homem, escrevia já contra a morte. A morte. Como forma de perdurar. Com a ideia presente da incógnita da paternidade, o rapaz escrevia contra a sua morte por medo do anonimato, como uma forma de suspender esse término que é o tempo que uma bala demora da pistola que a dispara até ao peito que a recebe. Escrevia fragmentos dispersos, nada mais conseguia do que farrapos meramente decorativos, coisas do que poderia ser ou ter sido, palavras juntadas com pressa sem a calma de as prolongar numa história maior do que a morte.
Havia um rapaz novo, já não tão novo quanto gostaria de ser mas ainda demasiado jovem para pensar no fim das coisas, havia esse rapaz e havia o que escrevia contra esse fim. Um dia, o rapaz viu-se rodeado por uma ideia descabida: haveria de começar a escrever pela vida, por todos esses anos, incertos, que estariam entre a sua existência e a falta de saber o que vem depois da morte. Ponderou e fez má cara perante a idea inusitada, e só a aceitou quando a começou a escrever. Escrever pela vida e contra a morte. O objectivo permaneceria mesmamente igual a si. Como um prolongamento, como um filho que se tem sem se ter. E o rapaz sentiu-se pela primeira vez eterno.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CENTO E QUINZE QUILÓMETROS A OESTE

1. Pré-APDC

Houve o choque no estrondo da noite.
Bêbados, os lençóis deram alento apenas uma vez
enquanto via pela luz que, escura,
aclarava as sombras do quarto.
Eu vi. Vi o abismo caindo em frente a meus pés
descalços no gelo do que viria,
e eu não soube parar de cair sem querer parar,
fui,
vi o sol,
comi tubarões e calças cinzentas,
tomei um judeu como escravo milenar.

Da minha raiva de praia sob o luar e da canção atirada contra as ondas,
e ele observando-a da encosta,
desprotegido, o meu grito ia morrendo contra a água.


Mas na noite estava eu não sozinho,
nunca
estive.
Fui só senhor dos templos deserdados,
nada mais.
Até haver a noite em que a televisão se compadeceu de mim.
Fui já não egoísta, mas malévolo, ó, se malévolo fui,
como se tudo fosse o espelho de mim próprio.
Depois, nas teclas límpidas de um piano,
toquei a juventude de me saber carne,
e envelheci.

2. Na rua, cento e quinze passos, entrar.

A leitura repetida exaustivamente.
Queimada pela luz capitalista.
Os meus olhos sem acreditarem nas letras.
Como se fosse uma punheta diária.
Não senti o orgasmo a gerar-se.
Soube, no entanto, gerir as trevas.
Segui a voz dos caracóis até me encontrar de novo rosto.
E ele perguntava, não estás estilhaçado.
Não, estou uno porque o calor é o mesmo.
E no fim havia sempre o capitalismo.
Porco, que me levou à soberba.
Jade partida, miríade de merda cinco horas a sul.
Continuei porque era café para os mais novos.
Nunca vi por essa altura que dos abismos se sai por cima.
Escavei, no entanto, segui os caranguejos.
Nunca vi as baleias porque dormia.
E talvez nem me lembre bem do cimento que incorporei.
Porque os sumos morcegos, erráticos.
Talvez estivesse mesmo a estilhaçar-me.
Caminhando até à inventada radiação.


3. East placed, West-bound.

Acordei com o Canadá no quarto,
E os meus olhos eram uma alergia à partida sem lágrimas.
Pelas montanhas, via-se a praia que reflectia o céu.
Com risos, direcção sul, uns cento e quinze quilómetros a Este,
Onde as ruas eram perfeitas. Fugiram-me, fiquei só, entrei no avião,
Bebi.
Porque fiquei sempre a Oeste, corpo de volta à velhice.
Não vi os navios partirem. Mas deixei-os estar até
que a Inglaterra me trouxe de volta ao conforto de me saber suicida.
Não me matei, no entanto.
Porque o meu cérebro está ainda a cento e quinze quilómetros a Oeste.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

one two three

before I count one two three
(the steps up to nowhere)
the whore at the bed prays
and the baby is animosity

oh what a pleasant curse to be,
my arms grew larger than life
and now the candle holds the cynic
I count one two three.

sábado, 10 de setembro de 2011

the sounds of love, I'm waiting.

You taste like cigarettes and mint
When I kiss your mouth and
Lick the wounds of my own battles.
Who owns this piece of land you are,
A stranger in the night asked me once
As he tried to kill me because I was home.

You feel like cotton candy in my hands,
Sticky, sweet, I sweat as I fuck you from behind
And I never, ever moan because
My dick isn’t connected to my brain,
No it isn’t – I’d rather have that stranger kill me
Than let you hear my pleasure inside you.

a lista

Pensei durante essa terceira vez 
que uníamos os corpos que o 
amava, ou que o principiava em amar. 
Queria dizê-lo.
Saímos para fumar. Eu tentava 
fazer conversa, mas só recebia respostas. Caminhávamos, 
fumando. 
Perguntei-lhe se estava tudo bem. Sim. 
Mas ele parecia muito estranho. Sentir-se-ia ele estranho 
sempre que o sexo terminava? 
Não queria falar disso. 
Estava estranho. 
Despedimo-nos com um aperto de 
mão bem heterossexual. 
“Desculpa se fui muito inquisitivo. Tem uma boa noite!” 
“Não és tu, sou eu. Não tripes.” 
Foi a última vez que falámos e 
eu nunca mais o vi.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

fundamentalmente sujo

Conseguia ouvir-me dizer cá dentro, pára pára pára pára pára, um grito insondável, de um lado, repetido à infinidade da minha boa costela, quando, do outro lado, uns dedos negros e cobertos de lama agarravam o centro solar que existia no meio do meu pescoço mesmo antes da caixa torácica, esmagavam-no, filhos da puta, ao espelho não se lhes via as unhas nem a existência, mas como eles me prendiam, amaldiçoados sejam amaldiçoados até ao osso amaldiçoados, continuei querendo escutar mais a minha benévola cavidade, os dedos sem largarem, curse them curse them, vomitei e sacudi saliva, tentava salvar-me e não subitamente comecei a ver a minha mão direita coberta de esterco, preta, os meus olhos viram, vejam lá, viram para além da imagem reflectida o meu pescoço coberto de terra molhada, escorrendo a porcaria peito abaixo, pára pára pára pára.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

a hora do diabo

Disse-me apenas, Desce. Depois, repetiu o imperativo duas vezes num tom um pouco mais alto e um tanto ou quanto ridículo porque se deve ter apercebido que eu não o tinha ouvido da primeira vez nem da segunda. Nunca pensei que o Diabo pudesse ser uma figura ridícula. O tom ligeiramente exasperado, lembrando-me agora das coisas e com a noção de que a memória inventa lugares perdidos que nunca, passo a expressão, tiveram lugar de qualquer forma, esse tom um pouco mais áspero ainda que me tenha assustado na altura é-me agora regressado em jeito mnémico e daí resulta que isso me divirta e me esboce um sorriso involuntário. Levantei-me na escuridão e retirei os auscultadores do ouvido. Premi o botão pause no leitor de música e ouvi o som das trevas, surdo e impiedoso. Provavelmente já aborrecidíssimo, o Diabo repetiu uma última vez, Desce.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

"e o meu sonho desapareça"


                O rapaz estendeu a sua mão e ofereceu ajuda. Escorria-lhe do olhar um vago temor triste, uma profunda compreensão pelo castelo de areia que o outro erigira na sua praia deserta. A mão estendida, os olhos turvos, as costas curvadas sob o sol ardente, o rapaz esperava um qualquer sinal que fosse, mas o outro, contemplando apenas a sua fortaleza, ignorou que alguma mão ali estivesse para o salvar da onda pintada de azul, revolvendo o chão do mar em sua passagem num estrondo primeiro surdo e paulatinamente mais audível. Quando a água bateu na areia, o que sobrou na dourada planície foi apenas a areia, e o castelo, outrora indissolúvel, desaparecera entre as duas mãos nunca unidas.

domingo, 31 de julho de 2011

I'm a happy person

I’ve been to the depths of myself
And left tattered and torn.
But despite myself,
I’m a happy person.

And “when I fall I’ll weep for happiness”
with blue faces carved on my skin.
And beneath it the clearest sun shines.
So clear, I feel the heat of its core
right in the center of my broken toll.
It’s just hard to let the sun out
when the rain my skin is falls hard
on the walls I’ve built only to arrest myself in harm.

I’ve been to my own fortress
And became trapped in it.
But despite my well staring at the sky
I’m a happy person.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

a rude metafísica [nunca te será o reino dos céus]

A José não era alheia a existência mas entregava-a ao poder divino de um deus que não conhecia por nunca lhe ter lido as palavras. Sabia dele o que lhe havia sido ensinado pelos pais e o que ouvia na missa. Não compreendia a figura que o observava de um lugar qualquer no céu, porventura não falariam sequer a mesma língua, mas a certeza de que alguém superior ordenava os mecanismos do mundo era reconfortante e servia de energia para que a máquina que era o seu instinto básico de sobrevivência continuasse a pulsar mesmo perante uma realidade tão severa. Abriu o pequeno portão de madeira da sua propriedade e a passo muito lento caminhou até à porta. 

a mulher que não conseguia escrever romances

Sentou-se e olhou para a página meia escrita. Pediu novo café e decidiu-se a transformar o que imaginara em literatura. Pensar as palavras certas, as descrições límpidas e as metáforas acertadas, mas o período. Como desaparecessem os homens e mulheres que ficcionalmente lhe haviam invadido a imaginação, fechou o caderno bruscamente. Nunca escreveria um romance. E na sua cabeça de literária a culpa era do período, o bode expiatório a degolar era o ser mulher, fêmea, fraca e exposta. E desejou ter nascido homem com um pénis que simbolicamente fosse a mão a semear a terra e a possuí-la. Aquela sua chaga, pensava, aquela sua chaga era a realidade inevitavelmente a tocar-lhe com os seus dedos corriqueiros e vulgares. Ah, como era filha de uma grande puta, a realidade.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

spreading an eclipse.

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado



Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.



Fernando Pessoa 

spreading an eclipse.

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração. 

domingo, 10 de julho de 2011

desnudo, vivo.

Havia perdido ainda outra vez mais uma mão. Perdera a conta. Elas cresciam, sempre cresciam mais cedo ou mais tarde. Daquela vez, no entanto, desejava que ela crescesse mais rápido, que o seu surgimento fosse mais vespertino porque lhe fazia falta mais na altura do ocaso, o que criava um problema: na aurora faltava-lhe a mão no sono, onde era tudo um concerto sem que ele pudesse tocar o instrumento que lhe competia; no final de tarde, a mão deixava sentir-se em falta para segurar a bengala que na flor da sua juventude usava para guiar o corpo de velho, pesado, moroso, deficiente. E necessitava também da mão para esmurrar quem se atrevesse a tentar roubar-lhe mais uma que fosse. Só quando obtivesse uma nova mão poderia ele esmagar o mundo com os dedos. E ser, sendo.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Américo, exilado.

À noite, tudo me é execrável e todas as coisas me são mais claras. Renego tudo porque tudo me incomoda as entranhas. Faço o mundo girar ao ritmo da minha bateria. Ao som de uma locomotiva em andamento exalando vapores negros como o breu, abano a minha cabeça e, morto para o mundo, é como se ele fosse uma bola de bilhar que manipulo ou esmago contra uma parede.

1200

Consequentemente, no anonimato da sua própria presença começou a sentir um desconforto inesperado, uma paulatina epifania que relegava a sua t-shirt original e cabelo e nacionalidade diferentes para um plano onde nunca seriam novidade nem motivo de curiosidade extremas. Viu-se uma vez mais sem alguém a conversar consigo. Continuava sorrindo, agora um pouco estupidamente, e, já bebido, seguia olhando em volta, perscrutando a sala com o olhar turvo.
            Pouco tempo após essa repentina e repetida solidão voltavam os seus amigos. Não era ainda hora de ser um dos beautiful ones. Pagou a sua conta, tinha gasto mais do que devia sem no entanto se arrepender, e saíram, ele e os seus companheiros, daquele sítio de arrojada e urbana vivência. Tinha fome. Foram a um restaurante ainda aberto, um daqueles diners que normalmente tresandam a cozinhado foleiro, e ele pediu dois hambúrgueres com batatas fritas. No seu estômago, o vinho caro recebia com prazer e contradição aquela fast-food sebácea e mundanamente saborosa.
  

quarta-feira, 6 de julho de 2011

para o tubarão, lágrima.

No dia seguinte, um anjo ligou-lhe, de sexo bem notoriamente feminino, com votos de promessas e compromissos que através da sua audição ensonada provocaram estranhos sonhos de aflição controlada. E acordou para o calor da terra e para o dia que já ia bem despachado, fugindo-lhe por entre os olhos, que estavam de partida.
            O mundo estava ainda por descobrir. Esse mundo que um dia tinha sido apenas a terra que o vira crescer expandia-se agora em larga escala, galopando veloz, e ele não sentia que essa sede pela Terra algum dia fosse estabilizar. A memória dava-lhe o arcabouço necessário para firmemente suster a respiração durante o tempo que uma despedida dura. Essa memória que, fragmentada como todas as outras, encerrava buracos mais negros que a cor do escuro, largava e armazenava manchas solares tão fortes quanto as do sol. 

segunda-feira, 27 de junho de 2011

adágio

Continuava respirando e o suor caía em gotas gordas e pesadas. No quarto quarto, e isto não é um erro, pensava, a luz queimava-lhe a vista e a testa era mais leve do que outrora. Seguia respirando, seguia, porque não podia fazer mais do que seguir. Não podia. Seguiria respirando e transpirando. Até sufocar e se tornar um deus que levanta voo no escuro. Sem veneno - apenas asas feitas da sua voz bem alta.

sábado, 18 de junho de 2011

Justaposição

A PENUMBRA

Uma noite em claro estou, eu não sei rezar
Pensamento inútil vou tentar-me anular
Fiquei triste, triste sou, eu não sei rezar

Vem que a alma se afunda
Nesta imensa penumbra
Que a noite me está morrendo
Que a noite me está morrendo

Minha noite um brilho tem, um sinal plebeu
Não tenho malícia mãe, o discuido é teu
O amor não se nega nem a quem nega o seu

Uma noite em claro estou a saber de mim
À flor da minh’alma sou princípio do fim
Quem me prendeu, quem me amou
Não cuidou de mim

Jorge Fernando

http://www.youtube.com/watch?v=iUgJsI66gt0

segunda-feira, 13 de junho de 2011

acknowledgement

CONTRA 
 
O ecrã olhava-me,
Eu quieto, ansioso.
Vi nas letras vazias
Quem sou.
Só soube ser nas letras vazias.
Nunca de outra forma
Os comboios passaram por mim.
O ecrã olhava-me,
Eu irrequieto, caótico.
Não li mais letras,
Os meus olhos desistiram
Quando meu corpo sucumbiu
Ao vazio das palavras não ditas.
Porque nunca consegui ver as que de facto se disse.

domingo, 12 de junho de 2011

acção impedida

Esperei para ver-me,
Sentado,
Esperei debaixo da
Luz.
Vim então ter comigo,
As vozes sem cabeça falando,
E o homem nu estendeu-me a mão
Num aperto que tive de lavar.
Amei-me?
Continuei esperando por mim debaixo da
Luz.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

where is it?

      Como proceder daqui, analisar a performance esquecida e procurar o casaco nos escombros? Quebrou-se ali o parágrafo, reza a história que foi de queda quebrada que tudo também aconteceu. Falava com um rapaz de olhos inusitadamente azuis, criticando a panela onde se derretem as cores, metáforas, metáforas, metáforas, traduções literais com adições. Assuntos assim tão interrompidos por uma brasileira putinha e bastante pequeninha, que era bela e morena, e foi-se embora o rapaz dos olhos, e pronto, foi-se com meios beijos a rapariga, restou o panda. O panda era grande e asiático, tempestuou através do bambu, imenso e magoado, e revelou-se dócil como um urso amestrado. É a sua última memória dessa noite até à madrugada. O panda. Que significado terá que ter este flash?        Os olhos acordaram de um sonho sem sonho, o odor nauseabundo a refluxo cor de rosa, onde estás, na ilha vista, não, isto é um hospital. Não sabia onde estava a carteira e o passaporte, tinha telefone, cigarros e tabaco, faltava-lhe o casaco, onde estariam os escombros? Viu outro que tal como ele, mas para o outro tinha vindo um carro – ninguém tinha isqueiro, que traça ter de aguentar até chegar a casa. Chegou, tresandava, doía, veio a amiga, riram-se, ele rezou que estivesse o casaco com os amigos – onde estariam os amigos – e deitou-se. Acordou passadas algumas grandes horas sentindo-se o pior sentimento à face da terra. O seu amigo não tinha o casaco, nem o valete. De toda a lentidão ainda houve algum riso e a consciência da perda e do custo de ganhar de novo o apostado sem olhar. A comida mexicana, grátis, fez-lhe mal ao estômago, e na casa da noite anterior não estava casaco algum não nos escombros concretos, a melhor das sortes, desejou-lhe um tal palerma como ele. Era a vez da polícia, que um deles o reconheceu imediatamente, bonito que só. 
A partir daqui é tudo parece que, terá acontecido assim. O polícia disse-lhe que o tinham encontrado, estando bastante agitado e rodeado de estranhos que diziam, foi atacado, foi atacado. Quase afogado em vómito, balbuciava o que todos os bêbados balbuciam, que não era checo, era português. Ao que parece, só não tinha ido para a prisão porque precisava por demais de médicos, era aguda a intoxicação conduzida pelos tiros. Não tinham achado nem virado para dentro nem o casaco nem a carteira nem o passaporte. Ainda foi à casa do outro lado da rua, ninguém, estava toda a gente na extravagância do sábado à tarde e noite. Passou o resto do dia e noite sentado no sofá, olhando o ecrã repetido da televisão, lento, demorado e impotente para encarar os zeros tais como eles eram. E veio o domingo, concatenando o dreno que sugava tudo e tudo. Ainda o casaco sem aparecer, a carteira dentro dele e o passaporte roçando os dois.
             

da história a ser recuperada

De Adão e o seu Diário

Adão, feito carne no jardim,
abala, urbano, um cigarro carregando,
e olha ao longe as luzes.
Crocita o Corvo e os portões rangem:
há betão e vidro e indústria.
É Tróia – onde se escreve cartas de amor
presas nas horas de ser Alexandre

__

Feito carne nesse jardim,
Abala, urbano, um cigarro carregando,
numa noite sem fim
e percorre o caminho, as luzes ao longe olhando.

Crocita o Corvo, rangem portões:
é vidro, indústria e betão.
“Somos muitos, mais do que milhões”,
diz a cidade, e o rapaz é Adão. 

quarta-feira, 8 de junho de 2011

tríptico de espera

3.30

Um,
Rumo ao sul
Na carruagem as oliveiras nas cartas
Dadas de pernas abertas.

Dois,
Chora uma criança a sul
E na terra avermelhada cai o céu
No franco duende fechado.

Três,
A música persiste ao sul
As casas brancas acenando
As conversas escondidas

Meia,
Ao sul, um carro esperando,
Sinto-o, não o vejo,
Durmo apenas o cegosurdomudo sono.


1.30

Uma hora
Ardendo em bancos ocupados
Fora de mim,
Como foi que assim tudo se volveu,
Um sol de sangue ardido,
E eu, o topo de um precipício,
Fiquei sendo o fundo
Olhando o céu.
Hoje, meia hora,
Crio asas que vão voando sozinhas,
No meu próprio limbo de tempo desfeito
Sou apenas o que posso ser,
Em nada mais me resta transformar.
E as asas que ardam até
Os meus braços serem pedra
Forte, e eu suba, por fim, mais alto do que elas.


- 1.30

Menos de trinta minutos.
E rasgos de luz insuspeitos a transbordar de sentido.
Leite derramado sobre a fronte quente.
Foi a confusão buscar-me sorrateira.
Furou-me de lado a lado.
Só depois a luz espreitou por dentro de mim.
Iluminou o furo e queimou a ferida.
Menos uma hora.
Gritarei de triunfo se tal for essa luz.
Estarei no oriente encontrado, os bancos puros.
E Vénus recolhida, dormindo, entregar-me-á os seus cabelos.
Sem sequer acordar do sono do Amor.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

a mulher, ainda.

Uma mulher, visivelmente deslocada, saiu do autocarro, os óculos de sol tapando-lhe substancialmente o rosto e o lenço zebrado cobrindo-lhe os cabelos, olhou em volta e permaneceu em seu lugar, ondulada pela brisa quente, após o som da viatura, morosa, ter desaparecido no espaço. Não se sabe quem esta mulher era, nem que vinha fazer à aldeia, tão desabituada a estranhos. A sua barriga de grávida parecia uma deformação perante o resto do corpo delicado, estreito. A mulher continuou silenciosa e quieta, olhando em volta, à procura de alguém ou de algo. As poucas pessoas que naquela rua se demoravam nos pensamentos, sentadas nos bancos públicos, observavam-na com alguma curiosidade e relutância. O sino da aldeia soava não longe dali e à última badalada a figura de vestido preto segurou com mais força a sua mala e principiou em caminhar em direcção à tasca. 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

"cerra-se o frio"

Leva-me a ver Diógenes. Maria Helena disse estas palavras sem a certeza de as sentir ou sequer de que o que elas significavam fosse possível. Baltazar Alexandre, que mexia a sopa ao lume, parou por momentos, a sua face iluminada pelo fogo. Era como se soubesse que aquele pedido era inevitável, e não sabia se o temia ou por que razão o temia, como se acedendo à súplica de Maria Helena um qualquer mecanismo já em andamento iniciasse um movimento perpétuo cujo resultado seria nefasto. Sem se voltar para a mulher, disse somente, Primeiro, comeremos. E voltou a mexer a sopa agora apenas por mexer.
O ágape foi o silêncio do tempo. Comeram os dois, homem e mulher, cada um pensando coisas diferentes ou porventura equivalentes, não se atreveriam a revelá-las. Terminaram, Maria Helena entregou o seu prato a Baltazar Alexandre, que lavou a loiça numa velha pia barulhenta. É tarde já, disse o velho homem. É melhor que agora durmamos e amanhã pensemos nos passos a dar em seguida. Maria Helena não pareceu satisfeita com as suas palavras, sentia-se cansada, sim, mas saberia que nenhum descanso seria possível. Perguntou, no entanto, Onde durmo. Dormirás na minha cama e eu na sala, e por favor não insistas em dizer que não porque não poderia ser de outra forma, estando tu grávida e nós em minha casa. Maria Helena reconheceu nesse instante o mesmo Baltazar Alexandre que conhecera e, por momentos, a sua vista que só via noite conseguiu vislumbrar um rasgo de luz límpida. 

quinta-feira, 12 de maio de 2011

"NA CARÍCIA DE UM GESTO FUGIDIO"

"Não deixai que ao casamento das almas verdadeiras
Admita impedimento. Não é amor o amor
Que se altera quando a alteração encontra,
Ou se curva com o que se afasta afastando-se.
Oh não, é uma marca fixa para sempre
Que enfrenta as tempestades sem ser abalada;
É para todo o barco à deriva a estrela,
Cujo valor se ignora, embora em altitude seja considerada.
Não é o Amor ludibriado pelo Tempo, embora lábios e rostos rosados
Dentro do seu compasso curvo como uma foice venham,
Não se altera o Amor com as suas breves horas e semanas;
Mas há-de suportá-las até ao fim dos tempos:
        Se isto for erro e acerca de mim provado,
        Nunca o escrevi nem nenhum homem terá amado."


E. E. Cummings, eu: seis inconferências.

ubiquity

And if I ever lose my blues
The city will bring them back to me
 At dawn, at dawn.
This isn’t happiness, this is acceptance.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

ENTRA, ROSTO.

Irremediavelmente, sou eu.
Atravessemos as flores e os espinhos,
juntos. Nesse jardim, hei-de olhar-te
como se olha uma rosa a florir em sangue.
Quando dormias a meu lado, lutei
contra as lágrimas do silêncio do teu corpo,
dos teus olhos vendo escuridão.
Atravessemos, pois, a água e as árvores,
e depois chora por mim, acordado.
 
A noite é-me tão escura.
O tempo tem gravidade absoluta.
 
Incomensuravelmente, estou aqui.
Abracemo-nos face à Primavera,
enlaçados. Nessa janela, hei-de ver-te
partir como sempre quando partes.
Mesmo se as lágrimas secarem, haja
um oceano quente para os barcos
que criámos ao navegar nos lençóis.
Naveguemos, pois, neles até
às praias que jurámos, adormecidos.
 
Que na noite eu seja grande como tu.
E que o tempo seja o nosso centro.

na noite que me tem tido

7
Choro por ti, interminavelmente.
Sem poesia alguma, será que assim fico
mais feminino, diz? Na aula de boxe
hei-de esmagar um crânio, e levantá-lo
num plinto de cristal sobre esta cama
onde esqueci o clube a que pertenço.
Que farei eu, se me acontece
amor sem corpo ao corpo atravessado
e, contra tudo, quero o que não sou?
Também tu és criança, mulher, homem,
bicho tardio que me consome o rosto,
misturado comigo é quando existes.
Já de olhos secos me vesti de tudo,
até quando quiseres que seja nada.

in António Franco Alexandre, Duende.

o caminho que a vida encontra, vindo.

No entanto, nunca em nenhuma dessas excursões Eva se tinha aventurado em demasia pelas ruas cheias de gente diferente das gentes que conhecia na aldeia, talvez por receio da sedução do que é morbidamente apelativo para quem a vida não parece prometer mais do que um tecto e muito labor. E assim o mundo era para ela o seu casamento com Nero, a incapacidade dos dois de terem filhos e agora a perspectiva de ter finalmente um rebento sangue do seu sangue. Tudo o que existia de permeio nesses momentos que Eva considerava serem o significado necessário da sua existência calada pelas subtis forças da ruralidade que era o seu berço, todos os instantes que eram os compassos de espera entre o nascimento, o casamento, o ventre secado pelo calor e o frio e agora o futuro parir de alguém seu constituíam apenas tempos que pouco ou nada lhe diziam. E foi ainda com uma alegria de menina que Eva acabou de lavar o último prato e o pôs a escorrer. Lançou até um derradeiro olhar ao cão que seguia farejando um rasto intermitente na rua, sorriu e saiu da cozinha. Os últimos raios de sol daquele fim de tarde começavam a emagrecer visivelmente e Eva não reparou que o que o cão procurava era um lugar isolado onde pudesse morrer.

mais um pouco da forma das coisas vindouras

Ainda em tão tenra idade, tão puto e depenado, suave como uma criança qualquer, dourado pelos cabelos claros e moreno do labor dos dias das férias de Verão, ainda em tão tenra idade Diógenes elaborava diversos tratados filosóficos mas nunca se sentia tentado a escrevê-los, porventura por falta de vocabulário suficiente para significar no papel os conceitos organizadamente inomináveis que lhe iam na cabeça, mas também por uma falta de vontade de aborrecer o que pensava com o transporte do que lhe parecia belo e verdadeiro na sua mente para um papel onde, desconfiava, todas as palavras que usasse iriam roubar dos seus pensamentos uma qualquer espécie de pureza e significado que era o que significava. Então Diógenes trabalhava o seu corpo ao mesmo tempo que discorria em pensamento sobre todos os temas que fossem os temas daquele dia ou daquele preciso momento.

domingo, 8 de maio de 2011

das coisas que estão para vir.

A mulher deambulava pela aldeia com as malas nas mãos e não sabia se havia de ficar ou partir. A noite caíra sobre a terra, e as estrelas, buracos por onde se podia vislumbrar o paraíso, não lhe marcavam o caminho. Como um pirilampo sem luz, não via o rumo que seguia e tomava. Ao pousar as malas, caiu também o desespero do deslocamento, da acutilância da noite e do peso de estar em busca de uma agulha num palheiro sem saber se a queria realmente encontrar. As suas pernas absorveram-lhe toda a ansiedade dos olhos olhando para dentro, e teve de sentar-se. Não tinha fome de comida nem sede de água. O objectivo da sua missão escondia-se cada vez mais, coberto por um caos que lhe confundia todos os propósitos. Então, sob o luar e o terrível céu brilhante, a mulher não conseguiu chorar – antes entregou-se a um martírio autista que catatonicamente a destruía perante a treva resplandescente da noite.


de um homem para todos.

Aceitemos então que estamos sozinhos e, a partir daí, façamos a nova descoberta de que estamos acompanhados – uns pelos outros. Quando pusermos os olhos no céu estrelado, com a furiosa vontade de lá chegar, mesmo que seja para encontrar o que não é para nós, mesmo que tenhamos de resignar-nos à humilde certeza de que, em muitos casos, uma vida não bastará para fazer a viagem – quando pusermos os olhos no céu, repito, não esqueçamos que os pés assentam na terra e que é sobre esta terra que o destino do homem (esse nó misterioso que queremos desatar) tem de cumprir-se. Por uma simples questão de humanidade.

In Deste Mundo e do Outro, Ed. Caminho, 3.ª ed., pp. 216-217

Aqui: http://caderno.josesaramago.org/2010/06/28/questao-de-humanidade/

sexta-feira, 6 de maio de 2011

fala-só

A Caixa Número Três, A Quinta Bobina

A Krapp

A minha memória gravada, (solidão de quem recorda
sem se lembrar), entoa a minha voz apagada,
enquanto eu, preso a um fio rompido, bebo à minha loucura
de ser estrume. E escorrego nele, de face calada,
rememorando os obtusos anos
da minha procura.
Suspendo o fio, adianto, regresso e
grito nos intervalos da lembrança
e contra-digo o discurso que digo;
os aniversários enfadam-me, o amor cansa,
eu fui porcaria jovem e a minha aurora
um castigo.
Nessa caixa número três, na quinta bobina,
rodam os anos magoados,
e eu bebo sozinho e amaldiçoo toda a minha história;
para mais tarde, vencido, de olhos tão fechados,
que se abrirão vazios, escutar abraçado o silêncio
da minha memória.

terça-feira, 3 de maio de 2011

st. james and his last name.

it's a circle. and maybe this seat feels just the same. you know, like the movement of the earth.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

"when one world ends, something else begins"

INVERTEBRADO

Nunca soubeste nem saberás
quantos mundos eu segurei por ti,
amor – quantos cigarros queimados.
Não sabes os cortes de navalha,
não conheces a minha pele límpida a chamar-te amor – confessar,
nunca confessarei o acidente.
Não descobrirás, amor, as pistas nem as provas
desse amor em voo picado. Nem saberás o tempo de nós.
Porque o tempo, amor,
o nosso tempo nunca foi suficiente.
Dir-te-ei apenas que te amo e isso bastará.
E se algum dia disser que te amei acredita que será verdade.
Mas os milagres contam-se depois de acontecerem.

Nunca soubeste nem saberás
quantos mundos por ti criei,
amor – quantas vezes por ti me matei.
Amando o sofrimento de te amar.


Química



Toda uma vida
agrilhoada a compósitos que
lhe dão vida.
Houve mesmo quem
dissesse,
disseram,
que te amei quimicamente iludido porque
a nossa química era não mais do que
uma ideia pela qual me apaixonei para sempre até me acabarem
os comprimidos.

sábado, 30 de abril de 2011

6.3. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

RESPOSTA A PERGUNTA NENHUMA

(um dia alguém disse)
na busca do buraco último da inteligência humana
não há ninguém que abra a cortina a janela a porta
nem nada derrota a espiral que enrola os homens e as mulheres
nem há dualismo para aqueles fora de órbita

(ao que lhe responderam)
não caias nesse último abismo que devora
não tem de haver um palco uma casa uma saída
porque é tudo uma linha recta com cortes
não há oposições sem coisas que se lhe oponham

o universo é

sexta-feira, 29 de abril de 2011

6.2 Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

ANTES DO FIM

Se tentarmos mudar,
o barulho da cidade engole-nos.
Ouçamos o grito gentil do piano
numa noite em que todos os rostos sejam de festa.
Mesmo antes do fim do mundo, um estrondo.
Mesmo antes do fim, uma música.

No dia em que o mundo for embora.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

6.1. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

ADIAMENTO DA VIDA E DA MORTE


Uma luz brilha lá fora.
(tenho a porta aberta)
Queria que a luz entrasse pelo meu quarto adentro,
mas tranco tudo e guardo-a para outro dia;
reservo também sempre um pouco de trevas que raciono
à medida que vou reduzindo o riso,
para que a luz colida com o escuro
e o meu escárnio seja maior.

6. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

SUMMER RAIN

Abro a janela e

Pim

Pim

Pim

Chove na rua
e o eco das lágrimas é não mais do que o eco
dos passos que se passeiam na corrida dos automóveis.

Ouço, paro, escuto.
Vejo nos meus olhos tudo o que eles me dão
e lá fora ouço as bátegas de um choro que é só o que é.

A chuva entranha-se na chafurda de uma flor que quis ser
árvore mas que apenas foi aquilo que pôde um dia ser.
E tudo é tudo dentro de um nada.

Pim

Pim

Pim


Fecho a janela

[Silêncio]

quarta-feira, 27 de abril de 2011

5.3. A Palavra

A MATRIZ POÉTICA

A Herberto Helder

Este é o tempo da carne:
o tempo de um esplendor de esferas
circulando em volta de um sol sem núcleo.
E a sua matéria faz-se num fogo que arde ao ver-se
num vazio sem oxigénio.

E desce à terra, colhendo frutos que são pedras.

Cá em baixo, abate-se sobre os tectos
uma sombra branca de insónia,
que reflecte os raios desse sol,
rasgando a substância ao invés de a queimar.
Tal é a força do tempo da carne,

Que dilacera os corpos com fausto.

E, num momento, o mundo cessa, suspende-se,
preso sem horas nem espaço.
No fim desse fim, resta apenas um
poema que luta contra o tempo e a carne,
feito de palavras que dormem o silêncio,

Tomando a destruição do mundo em seu regaço.