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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

negação

Mataste-te dentro de mim, paulatinamente
entregando a tua inteireza ao caos: do
musgo verde onde dormimos um dia
principiou em brotar um
fio vermelho-sangue, um fio de ariadne
carcomido, quebrado, perdido e

do sismo que era gerou-se um sussurro,
das trevas da beleza as garras do tempo
cravaram-se em odiosa dúvida - uma
imagem terrível de perda e
suspeita liberdade; e todo o amor,
todo o júbilo, toda a elevada matéria do tempo

brandem espadas que enjeitam
os primeiros degraus,
o delírio das coisas,
os elementos iniciais.

vê como o romance do teu suicídio matou
a fotografia de ti, agora e
progressivamente mais baça: és
um rosto de luto nos meus olhos,

e eu fecho-os por não te ver e
para não te ver fechar os teus.


"Grey Daisy", Marilyn Manson


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

as vidas dos animais

"...Os animais não podem ser humilhados ou destruídos. Há uma espécie de dignidade por falta de recursos morais, uma inteireza fundada no mundo natural. Por meio de consciência, o homem alcança o poder ou a vulnerabilidade que o destrói. Escolhe-se a força ou a destruição própria, através da inspiração passada às provas, na enigmática malha da vida, opondo as astúcias do talento a cada repto das coisas. É o génio íntimo de cada um. Génio que não dá paz, que se contenta de si, e se alimenta no seu mesmo exercício. O poder é o poder, mais nada. Um bicho, depois de fugir em pânico assenta as patas na terra e avança inteiro, com os cornos baixos, ele todo projectado na violência da cabeça. Passa ou não passa. Passa ou morre. A morte é o seu abismo. Não pede perdão. Porque a inteireza animal é cega, limpa como a luz."
Herberto Helder, "Aquele que dá a vida" (in Os passos em volta, p. 105)  

provavelmente Carpóforo, Gladiador bestiário.

Trípticos

CENTO E QUINZE QUILÓMETROS A OESTE

1. Pré-APDC

Houve o choque no estrondo da noite. Bêbados, os lençóis deram alento apenas uma vez enquanto via pela luz que, escura, aclarava as sombras do quarto. Eu vi. Vi o abismo caindo em frente a meus pés descalços no gelo do que viria, e eu não soube parar de cair sem querer parar, fui, vi o sol, comi tubarões e calças cinzentas, tomei um judeu como escravo milenar. Da minha raiva de praia sob o luar e da canção atirada contra as ondas, e ele observando-a da encosta, desprotegido, o meu grito ia morrendo contra a água. Mas na noite estava eu não sozinho, nunca estive. Fui só senhor dos templos deserdados, nada mais. Até haver a noite em que a televisão se compadeceu de mim. Fui já não egoísta, mas malévolo, oh, se malévolo fui, como se tudo fosse o espelho de mim próprio. Depois, nas teclas límpidas de um piano, toquei a juventude de me saber carne, e envelheci.

Gottfried Helnwein - Epiphany I (Adoration of the Magi)


2. Na rua, cento e quinze passos, entrar.

A leitura repetida exaustivamente. Queimada pela luz capitalista. Os meus olhos sem acreditarem nas letras. Como se fosse uma punheta diária. Não senti o orgasmo a gerar-se. Soube, no entanto, gerir as trevas. Segui a voz dos caracóis até me encontrar de novo rosto. E ele perguntava, não estás estilhaçado. Não, estou uno porque o calor é o mesmo. E no fim havia sempre o capitalismo. Porco, que me levou à soberba. Jade partida, miríade de merda cinco horas a sul. Continuei porque era café para os mais novos. Nunca vi por essa altura que dos abismos se sai por cima. Escavei, no entanto, segui os caranguejos.
Nunca vi as baleias porque dormia. E talvez nem me lembre bem do cimento que incorporei. Porque os sumos morcegos, erráticos.
Talvez estivesse mesmo a estilhaçar-me. Caminhando até à inventada radiação.

Gottfried Helnwein - Epiphany II (Adoration of the Shepherds)


 3. East placed, West-bound.

Acordei com o Canadá no quarto, e os meus olhos eram uma alergia à partida sem lágrimas. Pelas montanhas, via-se a praia que refletia o céu. Com risos, direção sul, uns cento e quinze quilómetros a este, onde as ruas eram perfeitas. Fugiram-me, fiquei só, entrei no avião, bebi. Porque fiquei sempre a oeste, corpo de volta à velhice. Não vi os navios partirem. Mas deixei-os estar até que a Inglaterra me trouxe de volta ao conforto de me saber suicida. Não me matei, no entanto.

Porque o meu cérebro está ainda a cento e quinze quilómetros a oeste.

Gottfried Helnwein - Epiphany III (Presentation in the Temple)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

É no Meu Corpo que Morreste

é no meu corpo que morreste. agora 
temos o tempo todo 
ao nosso lado, como 
um lodo onde dormitam as 

conhecidas maneiras. 
algumas nuvens se aproximam, e depois 
se afastam, numa duvidosa 
manifestação de imperícia; 

os animais falantes 
atravessam corredores iluminados, 
embarcam na 

sossegada lembrança dos sonetos, 
o leve sono que pesou no dia. 
é no meu corpo que morreste, agora. 

António Franco Alexandre, in A Pequena Face

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

a carta

A cama por fazer 
foi a resposta de que precisei:
o silêncio da casa cheirava a morte.

Uma carta para cada um de nós:

Todas aquelas letras 
em 
todas aquelas linhas 
daquela minha carta, 
todos 
esses nomes, nomeações e conceitos, 
tudo a significar um abismo, 
mil e um abismos a nossos pés, 
quem me dera conseguir 
recordar o número exato de palavras 
e espaços e caracteres 
daquela 
filha da puta 
daquela 
carta. 

Para saber quantos abismos 
tive de sobrevoar. 
Para saber quantos abismos 
criaria eu,
um dia mais tarde.