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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Tríptico de Silêncio

Intro



Se o brilho no meu rosto fosse
prata de luar brando
e através da minha dor
andasse afogado o sangue da tua,
o amor teria então casa
e seria compacto como a noite,
noite onde todas as faces são
palavras nascidas do breu,
e o amor sorriria.
E eu diria 
que o amor é a fome transformada,
e que nós somos dois poços fitando o céu.

Selfie I: Elagabalus


Outro

Tâo soberba e tão cega é
a música dos surdos-mudos,
impercetível conjunto
(um mais um mais um)
de números iguais e inventivos.
Dessa água, um haiku morrente,
não beberei eu, cruel supremo.
Tu, alto, material, estreito, cadente
chegas como um sopro disfarçado
de verdadeira avidez.
Sem suposição de corpo,
és a mais severa música:
eu, tu e o diabo fazemos três.

Selfie II: Ἀκταίων




Ad Libitum

Gostava de saber a matriz do tempo.
Queria respirar pela minha voz,
como um dicionário de palavras suspensas.
A terra é afinal tão pequena,
e há tanto sangue na terra,
e tanta ciência e tantas flores
na terra.
Como um múltiplo do mundo,
eu levanto voo;
Como um bêbado ao alcance de um tombo,
eu levanto-me.

E por entre as corolas,
estrondo adentro,
como numa espécie de transe,
deixa-me ressuscitar no fim dos meses,
pedra sob pedra,
pétala a pétala,
como pólvora num arcabuz essencial.
Deixa-me ver enfim o pleno dia, ver
como homem primitivo e exato,
ver a luz primordial.

Selfie III: Ἠέλιος

sábado, 22 de agosto de 2015

imagem refletida

5.
Partiria pelas 14:30. Estava nervoso porque era suposto estar nervoso em tais situações. A caminho do aeroporto, sentia um fogo frio na garganta e no estômago, um fogo que me ardia gelidamente em contacto com o ar condicionado do carro dos meus pais. Eu, sempre externamente estoico, deixei-me estar condunzindo, só para não ter saudades disso tão cedo.
Os meus pais discutiam com o meu irmão e o meu primo, que viera porque gostava muito de aeroportos, permanecia calado, provavelmente feliz com a expectativa de rever os aviões a partir e a chegar. Esse meu primo, filho do tubarão, ironicamente enfeitiçado pelos aeroportos. Suspeito eu que fosse pela memória do pai.

Mas era eu quem partiria.

12.
Partiria pelas 14.30.
Estava nervoso porque era suposto
Estar-se nervoso em situações assim.
A caminho do aeroporto, a garganta
Um fogo em uníssono com o ventre,
Um fogo que me ardia friamente
Como o ar condicionado do carro
Dos meus pais. No entanto,
Deixei-me estar conduzindo, só para não ter
Saudades disso tão em breve.
Os meus pais
Discutiam com
O meu irmão e
O meu primo, que viera porque gostava muito de aeroportos
(talvez porque lhe lembrassem do meu tio, que chegava sempre de avião e tinha sido, seria ainda?, o seu pai),
Permanecia calado,
Provavelmente feliz com a expectativa
De rever os aviões na aterragem e descolagem. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

um tubarão morto na praia

3.
     O avião não caiu. Chegámos a Lisboa vindos de Cabo-Verde, sem nunca dormirmos. Eu sabia que algo se havia passado. A minha mãe era uma trave de força que eu não entendia totalmente. Tomávamos direções entre as lojas do aeroporto procurando roupas pretas, dizia ela. E aí, mesmo sem confirmação, eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei. Chorei tanto abraçado à minha mãe, tua irmã, que me afagava a nuca. Vi-te em todos os momentos das nossas vidas. E agora que tudo me parece difuso, eu lamento não ter ficado para sempre menino. Os pardejos que matámos no monte que eu pensava ser do avô. Como um dia me ensinaste a depená-los e aquele que eu depenei demasiado. A tua mota que me fazia sentir especial em relação aos outros meninos. As horas à tua espera no aeroporto e a felicidade de ver o avião que te trazia de França todos os anos. Mostraste-me o aeroporto sem nunca o teres feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as lágrimas caíssem dos teus olhos. Eu lembro-me, tio. Da operação que te ceifou metade de um pulmão, da cicatriz, dos cigarros e da aguardente que sempre tomavas em nossa casa antes de ires para o trabalho. E não sei qual dessas imagens é a mais tua.
       Naquela longa viagem sul-norte, desde o aeroporto até casa, o táxi recordava-nos de todas as lágrimas que iriam cair assim que chegássemos. Essas três horas e tal foram um crescendo. O fim de tarde lento, de calor, o meu gato desnorteado, ao chegarmos a casa. A minha madrinha que avisou a minha mãe para não ir para a casa da avó chorar e o quanto as duas choraram abraçadas por nos teres abandonado. E eu só conseguia imaginar o seu sofrimento medindo-o pelo meu.

        Queria que notassem que eu sofria.

        Talvez porque pensasse que me vias de onde estivesses.
      Subimos o caminho poeirento até a casa da avó. Abracei-me a um dos teus sobrinhos e chorei. A minha camisola preta de mangas compridas que havia escolhido pela cor, quando achava que essa cor te respeitaria, prendia o meu primo com força, ele muito maior do que eu, eu pequeno, apenas um dos sobrinhos, a chorar muito e à espera de ainda te ver. E o primo a dizer que depois de morrermos era como uma máquina que terminava. E eu não sabia o que ele queria dizer porque te queria num sítio melhor, à nossa espera.

      A tua mulher chorava num dos quartos e eu beijei-a com a minha boca nojenta e rebentada, e senti-me porco e indigno. Eu sofria e queria que as pessoas vissem que sofria. Não porque o meu sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem que eras o meu preferido e que talvez eu também fosse o teu. A avó chorava na sala, cercada pelas velhas. Do avô não me lembro, mas sei que ele te sentiu como nenhum de nós. Era uma tarde lenta de verão. A morte tocou-nos no calor e fomos dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.  

quinta-feira, 7 de maio de 2015

a assunção

Por entre brumas, Hércules
de beleza terrível
corre esvaziando o peito: e
vem um sinal dos céus,
em jeito de hélice:
andas em círculos,
herói,
despejando o sistema de circulação e
esgotando o espaço.

Hércules caminhará
continuando em círculos,
a saída sem entrada sem saída:
flanqueado por dois opostos,
que lhe dirão:
ama-nos aos dois e acha um no outro,
herói,
só assim encherás o peito,
cantando à vida.


Jan van den Hoecke, Hercules Between Vice and Virtue

quinta-feira, 9 de abril de 2015

qualidade de fortuito

o teu corpo cheira a balneário
e a minha mão é determinada
(nos teus braços
eu também tenho odor
a roupa interior transpirada)
vejo-te ascendente
e tu olhas a periferia,
mãos abençoando uma cabeça secular.

a humidade sobeja
no fulgor crescente de um grito que se gera
na impaciência de um sorvo
e eu flito as pernas e estendo asas espirais
na sudação do ar:
e abrindo a boca
solta-se num vaivém continuado

a interjeição que nos faz corar.

The Forgotten Guard (1957), Yannis Tsarouchis 

segunda-feira, 23 de março de 2015

o eterno retorno

a ilusão possível:
movemo-nos em direção
caminhando
com rumo
alvo e objetivo

pensando-nos linhas retas

o axioma maior:
somos pregados
um só sítio
olhando
em volta e

sabendo que somos circulares

The Ouroboros FestivalAlex Kuno

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Kalon kakon

Eu Prometeu
Prometo segurar-te
A chama 
Até que os homens 
Os outros homens 
Os de ferro
Te enferrujem essa urna
Onde guardas
A esperança minha
O mal de seres a beleza 
Terrível dos meus dias
Eu Prometeu
Prometo segurar-te
A chama 
Até que as minhas 
Mãos ardam 
E eu seja livre
Terrivelmente livre 
Do teu mal 
Tão belo.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

The Spin of the World

There could be no reason 
In the non-place between
A vast lust
And a castle's obsession
With being a wall
Against any 
Invasion

Not at sea
Not on land
Not in the air

There will never be enough
Arguments against 
The cruelty of the world
As long as we can hold hands
And as long as I walk
And the world
Spins

To the sound of drums
Or to the sound of a cry 
There will never be enough 
Rings in the sky
Or wells so deep in the air

And I'll never succumb
To this damn world 
Even if it stops 
Spinning

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

non-story

Ours is a non-story,
happening betwixt and by
lack of pretext.
You deemed it that way
when you didn't follow
the stream of blood
all the way unto my lap.
Ours is a non-story,
you are a non-person,
I am a non-lover,
but it all could have happened
in that place between
my heart and yours.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Tríptico de Espera

3.30

Um,
Rumo ao sul
Na carruagem as oliveiras nas cartas
Dadas de pernas abertas.

Dois,
Chora uma criança a sul
E na terra avermelhada cai o céu
No franco duende fechado.

Três,
A música persiste a sul
As casas brancas acenando
As conversas escondidas

Meia,
A sul, um carro esperando,
Sinto-o, não o vejo,
Durmo apenas o cegosurdomudo sono.


Francis Bacon, "1946"



1.30
Uma hora
Ardendo em bancos ocupados
Fora de mim
Como foi que assim tudo se volveu
Um sol de sangue ardido
E eu, o topo de um precipício
Fiquei sendo o fundo
Olhando o céu
Hoje, meia hora
Crio asas que vão voando sozinhas
No meu próprio limbo de tempo desfeito
Sou apenas o que posso ser
Em nada mais me resta transformar
E as asas que ardam até
Os meus braços serem pedra
Forte, e eu suba, por fim, mais alto do que elas.



Pietro Muttoni, "Sisyphus"


- 1.30
Menos de trinta minutos.
E rasgos de luz insuspeitos a transbordar de sentido.
Leite derramado sobre a fronte quente.
Foi a confusão buscar-me sorrateira.
Furou-me de lado a lado.
Só depois a luz espreitou por dentro de mim.
Iluminou o furo e queimou a ferida.
Menos uma hora.
Gritarei de triunfo se tal for essa luz.
Estarei no oriente encontrado, os bancos puros.
E Vénus recolhida, dormindo, entregar-me-á os seus cabelos
Sem sequer acordar do sono do Amor.


Naked Soldiers, in My Buddy: World War II Laid Bare

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

you are what you beat

Will
by James Allen

(from the book, "As A Man Thinketh")

You will be what you "will" to be.
Let failure find its false content,
In that poor word "environment,"
But spirit scorns it and is free.

It conquers time, it masters space,
It cowls that boastful trickster "chance"
And bids the tyrant "circumstance"
Uncrowned, to take a servant's place.

The human will, that force unseen,
The offspring of a deathless soul,
Can work away at any goal,
Though walls of granite intervene.

Be not impatient in delay,
But wait, as one who understands;
When spirit rises and commands,
The gods are ready to obey.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

new year's resolutions

i will wade out
                        till my thighs are steeped in burning flowers
I will take the sun in my mouth
and leap into the ripe air
                                       Alive
                                                 with closed eyes
to dash against darkness
                                       in the sleeping curves of my body
Shall enter fingers of smooth mastery
with chasteness of sea-girls
                                            Will i complete the mystery
                                            of my flesh
I will rise
               After a thousand years
lipping
flowers
             And set my teeth in the silver of the moon

e.e.cummings