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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o peso do mundo


"Os Ombros Suportam o Mundo"

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

a congestão


    Naquela noite, acordei com dificuldades respiratórias. Pensei que devia deixar de fumar porque sentia o meu tórax demasiado pequeno para os meus pulmões, como se eles estivessem inchados. Ainda estremunhado, desci as escadas que ligam o primeiro andar ao rés-do-chão e por momentos pensei que ia desmaiar. Pensei palavrões. 
    Cedo notei, no entanto, que o meu problema não era pulmonar: o meu estômago fazia um enchumaço na camisola do pijama, inchado que estava, e então comprimia as minhas costelas, pensei. E as dores no estômago, como se tivesse todo dobrado e encorrilhado, cheio de pregas. Aí pensei que podia fumar à vontade, quanto mais não fosse pelo apelo da decadência.
    Abri uma lata de coca cola, sempre achei que a coca cola é boa para provocar arrotos, que aliviam o estômago. E bebi coca cola às cinco da manhã. Ainda as dores. E dobrei-me eu de cócoras, apertando o estômago levemente, sem saber que estaria morto daí a 10 minutos. Deitei-me no chão e a congestão continuou. Os vómitos vieram finalmente e fiquei aliviado de início, sorrindo por trás das lágrimas que se formaram nos meus olhos devido ao esforço. Consegui levantar-me a custo e voltei a subir as escadas para ir à casa de banho.
    A morte veio-me de forma muito lesta. Tinha engolido um pouco do meu próprio vómito pelo canal errado e o arranque de tosse obrigou-me a parar a subida nas escadas. Tossi então de forma mais brusca e desequilibrei-me, caindo para trás de costas e escadas abaixo. O meu pescoço partido. A congestão. Eu tinha vinte e oito anos e morri.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

os quatro tempos de um momento



    Uma mulher, visivelmente deslocada, saiu do autocarro, os óculos de sol tapando-lhe substancialmente o rosto e o lenço zebrado cobrindo-lhe os cabelos, olhou em volta e permaneceu em seu lugar, ondulada pela brisa quente, após o som da viatura, morosa, ter desaparecido no espaço. Não se sabe quem esta mulher era, nem que vinha fazer à aldeia, tão desabituada a estranhos. A sua barriga de grávida parecia uma deformação perante o resto do corpo delicado, estreito. A mulher continuou silenciosa e quieta, olhando em volta, à procura de alguém ou de algo. As poucas pessoas que naquela rua se demoravam nos pensamentos, sentadas nos bancos públicos, observavam-na com alguma curiosidade e relutância. O sino da aldeia soava não longe dali e à última badalada a figura de vestido preto segurou com mais força a sua mala e principiou em caminhar em direcção à tasca.

    Entrando, o barulho dos choques eléctricos que eram a morte das moscas intimidou-a, assim como novos olhares por parte de alguns velhos, jogando cartas numa mesa ao centro. O dono do estabelecimento enxugava copos e chávenas mal lavados, e o cheiro da sala confundia-se com o fedor do bafo do diabo que assolava a aldeia nessa semana. A mulher sentiu-se desmaiar e susteve a respiração por segundos, pousando a mala no chão e apoiando a mão na porta. A sua gravidez não lhe permitia odores fortes, quanto mais nauseabundos como aquele. Mas havia, os seus óculos de sol impenetráveis pareciam dizer, havia assuntos prementes a tratar e nenhum tempo para quebras de tensão ou vómitos que demorassem o seu propósito naquele lugar esquecido. Os olhares dos homens ainda estavam estagnados na sua figura, e atravessar a sala era uma tarefa monstruosa, titânica, mas a mulher inspirou fundo e os seus saltos altos ecoaram na modorra da tasca. Poucos passos foram necessários até ao balcão, mas cada um deles era uma batida infinita e penosa, cada som uma repetição de outro som.

    Onde está Diógenes? Preciso de lhe falar. O dono da tasca permaneceu mudo, palito no canto da boca e um farrapo sujo no ombro, sem expressão alguma no rosto, como se aquela pergunta não fizesse sentido algum ou ele o não tivesse ouvido. A mulher tornou a perguntar onde estava Diógenes. Os homens que antes jogavam cartas e depois a olhavam continuavam olhando-a silenciosamente. Impaciente, a estranha bateu o pé no chão e ergueu a voz. Eu sei que você sabe onde ele está e eu preciso de lhe falar. O que a mulher olvidava era que a pessoa a quem se dirigia era um homem de muito poucas palavras e de muito lento raciocínio. As moscas morriam em cadeia e um dos homens da mesa levantou-se, deu um passo em direcção ao balcão e pediu um bagaço. De um só trago, o velho bebeu o líquido amarelado e disse, Diógenes está enlouquecendo e o padre ofereceu-lhe um canto na sacristia e uma cama, de onde não sai senão para olhar os pássaros no exterior. A mulher, perplexa, murmurou um obrigada quase imperceptivelmente, e virou costas. À soleira da porta virou-se outra vez para os homens e perguntou se Diógenes sabia que ela estava grávida. Nenhum dos homens respondeu. O silêncio interrompido pelas moscas e o barulho das coisas foi resposta suficiente para aquela estranha, forasteira, que pegou na sua mala e saiu da tasca a custo por carregar tanto peso consigo.

    Deambulou depois pela aldeia com as malas nas mãos, sem saber se havia de ficar ou partir. A noite caíra sobre a terra, e as estrelas, buracos por onde se podia vislumbrar o paraíso, não lhe marcavam o caminho. Como um pirilampo sem luz, não via o rumo que seguia e tomava. Ao pousar as malas, caiu também o desespero do deslocamento, da acutilância da noite e do peso de estar em busca de uma agulha num palheiro sem saber se a queria realmente encontrar. As suas pernas absorveram-lhe toda a ansiedade dos olhos olhando para dentro, e teve de sentar-se. Não tinha fome de comida nem sede de água. O objectivo da sua missão escondia-se cada vez mais coberto de um caos que lhe confundia todos os propósitos. Então, sob o luar e o terrível céu brilhante, a mulher não conseguiu chorar – antes entregou-se a um martírio autista que catatonicamente a destruía perante a treva resplandecente da noite.


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Adão e Alexandre


    Alexandre abraça-me e pousa as suas mãos nas minhas costas e nádegas, e incita-me a aumentar de ritmo. Masturbo-o concomitantemente, até que o levanto e o sento no meu colo. Os nossos movimentos convergem ao batermos um no outro. Seguro na sua cabeça, puxando-lhe o cabelo, e mordo-lhe o pescoço. Afasto-o um pouco de mim e concentro-me em penetrá-lo com cada vez mais intensidade. Olhamo-nos por momentos com a expressão de dor que é o orgasmo a gerar-se, espelhado em ambos os rostos roburizados. Venho-me dentro dele enquanto ele se vem também. Suspendemos o ritmo e ele cai sobre o meu peito, suspirando. Desprendemo-nos ainda arfando como cães e o cheiro a esperma invade o aroma da noite. A chuva inicia a sua queda e nós, deitados sobre as folhas do jardim, escutamos o contínuo pingar das bátegas cada vez mais grossas, esquecidos, durante este instante, do resto do mundo,  da degradação que o tempo trará aos nossos corpos, da eterna estupidez dos homens e do absurdo que é  a civilização, esquecemo-nos porque estamos, nesse momento,  esgotados, construídos. De lá de cima, Deus chora porque não sabe morrer.  

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

a solidão

    - Do corpo não lhe sabemos mais do que a morte, disse a mulher não sem esperança. 
   Ao mesmo tempo que lhe saíam as palavras da boca, brincava com uma moeda entre os dedos da mão esquerda e segurava um cigarro com a direita. O homem tinha apenas vagar para acenar afirmativa ou negativamente, assim, sem braços e com uma mordaça a impedir-lhe a fala. Dizia-se que o homem tinha ou nascido já assim, desbraçado, ou tinha cortado os próprios membros superiores em jeito de expiação. De que pecados, não o saberemos, ele apenas pedia à mulher para lhe retirar a mordaça quando precisava de comer e nunca falava. 
    Sentados à mesa, conversavam sem diálogo, habituados ao monólogo e à rotina. A mulher retirou a mordaça ao homem depois de terminar o cigarro e serviu-lhe a comida à boca. O homem mastigava lentamente, mais porque tinha de ser do que porque tivesse apetite. Aquele homem era o lixo de si mesmo, do que tinha sido, e dizia-se também que o seu pensamento, a sua alma - essa coisa tão bonita de tão sonhada - estavam num qualquer desterro auto imposto. Comia então o homem devagar e a mulher falava agora de coisas menos pneumáticas. 
    - Hoje o absurdo da coisa é que o gato adormeceu no sofá e vomitou-o todo. Não entendo os felinos: antes de se instalarem, passam quinze minutos a fazer o ninho com as patas, depois adormecem e vomitam a meio.
    Dir-se-ia que o homem nem a ouvia - era apenas um espectro sem braços, uma mancha humana deixada a esvaecer presa num corpo ridículo e abjecto. Ele sabia-o, ela sabia-o. Mas nenhum dos dois sabia que iam bater à porta daí a pouco e que a sua rotina iria ser alterada sem retorno.
   - A esta hora?, perguntou a mulher suspeitando. Pousou devagar a colher no prato, retirou o guardanapo do colo e pousou-o com delicadeza na mesa, não sem antes limpar a boca ao homem, ajeitou a saia, levantando-se, e foi abrir. 
    - Boa noite, disse uma voz ainda sem rosto. Posso pedir-lhe um copo de água?
    A mulher hesitava em responder e demorou algum tempo a produzir um som que fosse. O homem, sentado e sem braços, nem sequer havia voltado a cabeça para observar nem havia fingido interesse algum. 
    - Sim, disse por fim a mulher. Espere um segundo. Dirigiu-se rapidamente ao frigorífico, retirou uma garrafa de vidro cheia de água fresca e encheu um copo. Aqui tem, disse, entregando o copo à voz, que não agradeceu antes de beber nem no fim.
    A voz disse apenas boa noite, e o homem ouviu passos a afastarem-se. A mulher fechou a porta ainda com uma expressão de surpresa e incredulidade. Eles pensavam que estavam sozinhos no mundo. 


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O Globo Dourado do James Franco


Se o globo dourado do James Franco
for realmente dourado e circular
não me importaria de o limpar, 
o lustro puxando, sentado num banco,
vendo o sol a morrer e a noite emergindo,
sozinho, a sorrir como se o visse ao longe surgindo – 
Não o globo dourado, mas sim o James Franco.