Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O único axioma possível.

      Se um dia abolirmos ou destruirmos ou queimarmos todas as muralhas do mundo, então o mundo poderá enfim ser um só arquipélago.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

se o Álvaro de Campos fosse hipocondríaco

"Não contraio nada. 
Nunca contrairei nada. 
Não posso contrair nada. 
À parte isso, tenho em mim todas as doenças do mundo.


(...)


(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
 
Olha que não há nada que mais mal faça no mundo do que chocolates.) 
(...)
O homem saiu da Farmácia (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o; é o Esteves sem tensões altas.
 
(O dono da Farmácia chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus, gritei-lhe Mede-me esse colesterol, ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me cheio de diabetes e escleroses, e o dono da farmácia, fumando, tossiu.


Álvaro de Campos, "Farmácia"

sábado, 26 de janeiro de 2013

Travel Literature


OF SAILS AND PIRATES

To Becky, an inspiration

We travel endlessly 
And from heart to heart.

We meet those who might be coy of speech
but who carve themselves in our minds.

And though we’d like to stand by them
We can’t shake the feeling that festers in us,

that we must keep going and sail from shore to shore.
The feeling that we always need something more

And we hoist our sails with power
For the wind dries the tears in our eyes

And we know that what we don’t know
Is what keeps us trying and fighting.

A family on the dead man’s chest
And a bottle of rum full of friends.

We are pirates, corsairs on our way to
The greener lands on the other side

With nothing to hide, nothing to regret, nothing to fear.
And in our hearts there is no blue but that of the sky above and the sea below.


sharks on my legs


"Sharks on my Legs"
To you. I'll never forget the day you washed up on the beach. 

Speak the speech,
we’re closer now: we’re closer to the sky
and we’re reaching for the stars.

To love so mighty a queen
took its toll on my body:
now I’m a junkie.

But these are my golden years
or my salad days: reaching for the sky.

And I wish there’d be no more milk left
for us both to lick.
I’m the dancing bird of paradise,
I lost my poor meatball
and I never sneezed
But to love so mighty a queen
took its toll on me:
now I’m a junkie.

(Oh but I’m still reaching for the stars,
reaching for the stars!)

I burn my time: four minutes every day.
I smoke my pain away,
and I’m a sucker, I’m a sucker for the dark side.
I’m afraid, oh I’m so afraid!

I left the safety of the shore
I’m swimming in shark infested, shark infested waters

Sharks on my legs, sharks on my legs!
 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Desajuste

     - Os meus gatos são meigos, não arranham. Há outros gatos que são mais malvados, digamos assim. Claro que dizer que gatos são malvados é estupidez humana, querer atribuir qualidades nossas a bichos inocentes. O teu é um pouco agressivo.
    Ele falava e notava-se uma certa angústia na sua voz, como se justificasse algo que tinha feito com aquela conversa um tanto ou quanto desviante. 
     - É como as mulheres gordas: justificam a sua gordura ou apetite voraz com merdas completamente absurdas, porque "ter a perna magrinha é feio" ou "comer para a frente é o caminho porque ser magro é mau sinal" ou até "ser magro é muito feio, é mais bonito assim as pessoas serem gordinhas, terem a parrequinha gordinha".
     Este não falou com angústia, era mais uma certa mesquinhez e irrequietude que se ouvia no seu tom grave.      
      Mas expliquemos o cenário: uma cozinha aquecida pelo fogão de lenha, dois homens fisicamente distintos: o que está sentado (o que falou dos gatos) veste-se todo de preto e usa uma cartola ridícula na cabeça, tem um óculo no olho direito e fala entre fumaçadas de cachimbo (dir-se-ia que era um homem gentil no sentido britânico da coisa, mas o seu aspeto era profundamente saloio por ser ensimesmadamente idiota na época em que estavam, o séc. XXI); o outro homem, de pé e a lavar a loiça, é menos alto do que o outro, veste roupas adequadas ao tempo em que vive (pronto, está quase todo de vermelho, mas isso é um pormenor) e está desejoso de acabar de lavar a loiça para poder fumar um cigarro (não gosta de cachimbices e neste momento está muitíssimo enervado por o outro senhor não se oferecer para ajudar a arrumar a cozinha). Está explicado o cenário, espero eu.
     - Sabias que és barítono? Nota-se na tua voz. Não te preocupes, quase todos os homens são barítonos, raros são os tenores e mais raros ainda os contratenores. Barítono vem do grego e significa algo como "que soa profundo", grave.
    A sua voz também era grave, agravada até pela alta fumarada que fazia com o cachimbo, a conversa ia perdendo fios à meada.
      - Explica-me lá outra vez: como é que se aplica a categorização das vozes do canto erudito ou lírico ao mainstream e ao dia-adia? 
      - É como já te tinha dito: elaborou-se essa lista, digamos assim, antes da invenção do microfone, por exemplo.
       - Continuo sem entender o propósito.
      Tinha terminado de lavar o último prato. Sentia-se imensamente cansado e ainda com raiva silenciosa. Olhava para o outro da cartola com um certo desdém e violência contida. Escondeu as mãos debaixo da mesa para ocultar aquele seu ódio secreto e profundo de que os punhos cerrados eram metáfora. Teve mesmo de se morder por dentro para não explodir. Não já. Com um esforço sobre-humano, acalmou e descerrou os punhos, e subiu as mãos a medo para acender um cigarro. O outro ainda fumava o cachimbo com prazer.
      - Dás-me lume? 
      O homem do óculo, gentil, ofereceu-lhe imediatamente uma caixa de fósforos. 
      - Deves-te achar, deves.
      - Perdão? O quê, os fósforos? Gosto mais do sabor da primeira passa quando acendo cigarros com um fósforo. Além disso, são bastante mais práticos para acender o cachimbo.
      - Não é só isto - perdia as estribeiras -, todo tu és execrável, nojento, foleiro, saloio.
    O homem que lavara a loiça falava com fogo nos olhos, por entre passas rápidas e esfomeadas. O outro ouvia-o com uma expressão de culpa que nunca saberemos descortinar, apenas ajeitando o óculo de quando em vez, o cachimbo apagado. Por entre insultos e escárnio, retirou a cartola da cabeça e deixou a descoberto uma cabeça careca que não se coadunava com a sua idade. O primeiro homem calou-se.
   - És mesmo filho da puta, resmungou entre dentes, queres que me comova com doenças, é?
      - Não to queria dizer, não assim, pelo menos. 
      - Não me inspiras pena nem arrependimento.
      - Não pretendia fazê-lo, de qualquer forma. I'll be seeing you, sir. Take care.
      O homem voltou a pôr a cartola na cabeça e foi como se nunca tivesse tido cancro na vida. O tiro ecoou pela casa e sentiu-se o estrondo também na rua. O sangue espirrara para os pratos acabados de lavar e para a cara do homem mais alto, sentado de pistola ainda apontada ao outro. Teria de lavar a loiça outra vez e aquele filho da puta nunca ofereceria ajuda.