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sábado, 30 de abril de 2011

6.3. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

RESPOSTA A PERGUNTA NENHUMA

(um dia alguém disse)
na busca do buraco último da inteligência humana
não há ninguém que abra a cortina a janela a porta
nem nada derrota a espiral que enrola os homens e as mulheres
nem há dualismo para aqueles fora de órbita

(ao que lhe responderam)
não caias nesse último abismo que devora
não tem de haver um palco uma casa uma saída
porque é tudo uma linha recta com cortes
não há oposições sem coisas que se lhe oponham

o universo é

sexta-feira, 29 de abril de 2011

6.2 Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

ANTES DO FIM

Se tentarmos mudar,
o barulho da cidade engole-nos.
Ouçamos o grito gentil do piano
numa noite em que todos os rostos sejam de festa.
Mesmo antes do fim do mundo, um estrondo.
Mesmo antes do fim, uma música.

No dia em que o mundo for embora.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

6.1. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

ADIAMENTO DA VIDA E DA MORTE


Uma luz brilha lá fora.
(tenho a porta aberta)
Queria que a luz entrasse pelo meu quarto adentro,
mas tranco tudo e guardo-a para outro dia;
reservo também sempre um pouco de trevas que raciono
à medida que vou reduzindo o riso,
para que a luz colida com o escuro
e o meu escárnio seja maior.

6. Resposta a Pergunta Nenhuma ou dos Escombros, a Palavra

SUMMER RAIN

Abro a janela e

Pim

Pim

Pim

Chove na rua
e o eco das lágrimas é não mais do que o eco
dos passos que se passeiam na corrida dos automóveis.

Ouço, paro, escuto.
Vejo nos meus olhos tudo o que eles me dão
e lá fora ouço as bátegas de um choro que é só o que é.

A chuva entranha-se na chafurda de uma flor que quis ser
árvore mas que apenas foi aquilo que pôde um dia ser.
E tudo é tudo dentro de um nada.

Pim

Pim

Pim


Fecho a janela

[Silêncio]

quarta-feira, 27 de abril de 2011

5.3. A Palavra

A MATRIZ POÉTICA

A Herberto Helder

Este é o tempo da carne:
o tempo de um esplendor de esferas
circulando em volta de um sol sem núcleo.
E a sua matéria faz-se num fogo que arde ao ver-se
num vazio sem oxigénio.

E desce à terra, colhendo frutos que são pedras.

Cá em baixo, abate-se sobre os tectos
uma sombra branca de insónia,
que reflecte os raios desse sol,
rasgando a substância ao invés de a queimar.
Tal é a força do tempo da carne,

Que dilacera os corpos com fausto.

E, num momento, o mundo cessa, suspende-se,
preso sem horas nem espaço.
No fim desse fim, resta apenas um
poema que luta contra o tempo e a carne,
feito de palavras que dormem o silêncio,

Tomando a destruição do mundo em seu regaço.

5.2. A Palavra

OFÍCIO PROFANO

A palavra em ruínas, quebrada em pedaços, espalhada,
pertence-me, pertencer-me-á?
Pede-me que eu a una, que a reconheça, que a trabalhe,
mas eu só posso fragmentá-la, esquartejá-la, cortá-la até à exaustão.

E, assim, é minha a palavra?

Eu que a torno estranha e a rebento em mil, lhe dou munição e a desfaço,
terei eu esse direito de a tomar para mim?
Por que será que quanto mais ela me chama,
mais vontade tenho eu de a destruir e contaminar,
de a insultar e de a agredir?

Silêncio, palavra. Silêncio, que te vou ofender.
Silêncio.
Isto é uma violação.

terça-feira, 26 de abril de 2011

5.1 A Palavra

ARTE POÉTICA

Seca-me o cérebro ao pensar
em sentir com os neurónios,
enquanto o tricotar das teias
das sinapses untam o coração
de violência.

Matei um dia a musa velha
com uma bala direita aos seios
gordos e proeminentes, aos
mamilos petrificados de medo fabricado
pelo amor intenso.

Não tenho engenho nem arte,
não me cai pena alguma da mão.
Antes verto tinta para drenar
algum do mal de que um dia se pintou
o meu coração.

5. A Palavra

AS MÃOS

Das mãos se constrói o mundo e
com elas se trespassam peitos,
e se tira o leite à violência.
Como instrumentos de limpeza,
também se erradica impurezas com as mãos:
dos corações se arrancam crepúsculos
e dos olhos as suas meninas.
E fode-se com as mãos
e pratica-se o afunilamento de gritos contidos.
E dão-se flores com as mãos
e afagam-se rostos e gatos.
E é também com as mãos que se escreve poemas e romances,
e com elas se queimam livros.

4.1. O Tempo

DEPOIS DO FUTURO

Que ânsia de futuro,
que pressa em fazer um presente,
que sede de agarrar o tempo e esmagá-lo,
vertendo, depois, a areia sobre a terra,
para fazer crescer horas que nunca murchassem.

Quero condensar o primeiro segundo e correr com os outros,
estender a minha mão e receber os minutos,
torturar o presente e saber o que há depois do futuro,
suprimir a história e assassinar os dias de ontem,
encher de balas e fuzilar o momento.

E, ainda assim, fica inevitavelmente o tempo,
indagante dos rostos, cirurgião ideológico,
bisturi que cose retalhos desordenadamente,
engrandecendo para sempre os membros
sem amparo nem consolo nem alento.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

4. O Tempo

TEMPO

Quando for velho,
perguntarei ao Tempo
quanto tempo teve a minha vida.

O Tempo responder-me-á que o tempo
é aborrecido.

O Tempo dir-me-á que o tempo
é só para quem está atento.

Quando for velho,
perguntarei ao Tempo
quanto tempo ainda terá a minha vida.

O Tempo responder-me-á que o tempo
é relativo.

O Tempo dir-me-á que o tempo
é feito pelo momento.

Quando for velho,
perguntarei ao Tempo
quanto tempo o Tempo tem.
O Tempo responder-me-á que o tempo
o envelhece também.

O Tempo dir-me-á que o tempo
não espera por ninguém.

Publicado aqui: http://www.tintaucsb.com/ojs/index.php/tinta/article/view/42/72

domingo, 24 de abril de 2011

3.1. Carne

FODER

De todas as vezes que fodi, estive sozinho.
Os outros corpos eram meus, mas eu era só eu.
Até quando nos vínhamos ao mesmo tempo,
o meu orgasmo era apenas meu e
eu tinha prazer só para mim.

3. A Carne

COMO BRUNIR UMA VIDA

Por vezes, apenas precisamos que uma fonte seque
e que a nossa fronte derrame sangue,
esse sangue que de vermelho um dia se vestiu,
para que os músculos dos nossos lábios se expandam alegres,
satisfeitos como quando se tem um orgasmo.

Por vezes, somente necessitamos de vender a carne ao primeiro que passe, (essa nossa presença tão sólida,
tão pouco concreta e, ainda assim, tão ausente)
para que o último e mais grotesco fardo de respirar
levante voo.

Por vezes,
sermos fodidos por quem não amamos
(que nos odeiam, até)
é tudo o que precisamos para abrirmos as janelas
e deixarmos o sol entrar.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

2.6. Os Escombros

VIDA

Que sei eu da vida,
senão que sou um animal que se ri e escreve?

Que sei eu da vida?
Nada. Eu não sei nada da vida senão que a vou morrer.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

2.5. Os Escombros

deus

Eu era capaz de matar deus
por todas as pessoas que amo e
pelo mundo.

Eu era capaz de o assassinar
se isso fosse a maior dádiva
que eu pudesse dar aos homens e às mulheres.

Derramaria o seu sangue
sobre todas as bocas do planeta
e saciaria a sede e a fome.

E transudaria as suas lágrimas
nos poros de todos nós,
para que as doenças mirrassem.

Iria mais longe ainda e
escrevê-lo-ia com letras minúsculas
em todas as páginas e paredes da terra.

E assim deus tornar-se-ia apenas numa memória
das guerras e da culpa,
até ser esquecido como outra coisa qualquer.
 

terça-feira, 19 de abril de 2011

2.4. Os Escombros

PREMATURO

Entrámos pelo fogo adentro
e ouvimos o bater dos nossos corações no inferno
morrendo em dilúvios que arrastavam
um caixão desfeito.
Esmorecendo como uma guitarra,
esse velho bater de corações sobre a pedra é
demorado luto do medo que se renova.

E eu quero ser o teu mártir, mundo,
quero que me dês um revólver para te suprimir
caso não me afundes nesse teu fogo.

Eu que durmo o barulho eterno das viagens infinitas,
que temo um espelho mais do que a vida,
vejo a minha cal na tua face
e desejo chamar-te Amor.
Mas tu não vens, antes morres.
Uma morte lenta, no grito de um voo curto.
(E deus chora porque não sabe morrer.)

2.3. Os Escombros

O SEGREDO

Ao meu Pai e minha Mãe

Choraste quando te disse para viveres por ti e não por mim.
Choraste porque eu seria teu até ao fim dos teus dias.
O pai chorou porque chorámos os dois.
E aí eu percebi, mãe,
eu percebi que um dia me arrependeria.

De tantas vezes ter saído da mesa mais cedo.
De tantas outras vos ter falado do mal.
De ter sido gelo ao vosso calor.
De ter gritado veneno.
De ter desejado morrer.
De ter tido secretamente vergonha.
De vos culpar da minha miséria.
De não ter visto a que vos causava.

Agora sou eu que choro e vivo também por vós.
Choro porque serei vosso até ao fim dos meus dias.
E se penso tanto na morte é porque ainda mais penso na vida.
Foi esse o segredo que me ensinastes.
A perceber que serei para sempre o vosso menino.

2.2.Os Escombros

O ENTERRO

Na noite que me tem tido,
corro nu pelas luzes
e vejo-te, turvo, poema triste,
canto de pássaro no Inverno,
morrendo as notas da manhã.
Deslizas, leve, pelo orvalho,
e cais redondo no chão,
onde há esterco e sémen –
forte aroma de homem.
Sexos a latejar, voa o pássaro,
fica a semente.
E tudo colhe, a manhã.
Sobra então a impaciência e a verdade,
rotina de mim no progresso,
pelos raios de sol, invadindo,
fortes condições germinando,
comendo tudo em seu destino.
Na noite que me tem tido,
sou cérebro de boca,
colher de pau no açúcar,

E voa o pássaro
E há o fim das coisas.

(2009)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

2.1. Os Escombros

DUALIDADE

Nos meus olhos reflecte-se o dia,
com todas as cores que o pintam,
como um quadro de um artista que não conheço.
Sou eu quem está representado e
os tons são todos meus.
No entanto, tanto quanto identifico de mim
não se me assemelha a quem penso que sou,
porquanto a minha face não é
a que tenho vindo a pôr.

De olhos semicerrados e mente bem aberta,
olho de novo para a cena representada e
penso que não me representa.
Será isto um sonho que sonhei,
numa noite em que não adormeci,
ou será isto somente um espelho
que mostra o que imaginei e nunca vi?
Estou tendo, certamente, um devaneio,
desejando ser quem nunca foi como eu!

--

A dor que estou sentindo,
qual alma fora da alma que devo ter,
é como se doesse no exterior
do corpo de quem nunca desejei ser.
Talvez não seja mesmo eu
quem sente aquilo que sinto e
talvez a dor ache que eu lhe doo
na alma que certamente lhe pertence.
No entanto, sofre a dor e sofro eu também.

Quem experimenta aquilo que a dor oferece,
sentirá com certeza a doença
que o império lhe tece nas malhas
de uma alma que não é a sua.
Seremos todos reis que abandonaram
o trono em busca de mais riqueza?
Talvez sejamos apenas amantes eternos,
servis companheiros de viagem,
de uma sempre acordada e fiel tristeza.


2007

quinta-feira, 14 de abril de 2011

2. Os Escombros

DE CORPO E ALMA

O meu corpo
um templo violado
O meu corpo
as marcas de castigo
O meu corpo
partido e estragado
O meu corpo
fodido, desamparado, sem abrigo

A minha alma
brilhante e escura
A minha alma
que tem furos de vida
A minha alma,
com violência e ternura
A minha alma
sólida, ténue, partida.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

1.2. Pergunta Nenhuma

O que o meu pai diz


O meu pai diz sempre

que a máquina tem sempre razão

e eu fico sempre com muito medo

porque não quero ser uma máquina

para sempre

quarta-feira, 6 de abril de 2011

1.1. Pergunta Nenhuma

Lógica

Um som abafado cai
sobre cabeças que não têm ouvidos
e o barulho que isso provoca é
apenas as ideias daqueles que não as dizem.

Um rei que reina sobre cegos é
o maior cego que existe.
A chuva cai quando menos se espera,
os mortos afectam os vivos,
todos os impérios desmoronam.

Por isso,

um som abafado cai
sobre a cabeça de um rei que reina cegos;
o barulho da chuva acorda as ideias dos mortos e
o império dos vivos desmorona.

terça-feira, 5 de abril de 2011

I. Pergunta Nenhuma

O Medo

O medo que cessa o canto da cobra
provoca um orifício no corpo desnudado
de um anjo de asas negras.
As escamas que crescem para se transmutar em
pele de poeta vestido de serpente
comem as carcaças das palavras erigidas
por um homem sem tempo nem substância.

Não há glória no rastejar de um réptil,
tal como não há glória na androginia de
um homem feito anjo feito poeta.
Há cobiça na vã língua de assobiar,
quando se lambe uma folha de papel
e a saliva desenha poemas recheados de veneno.

A cobra, o homem, o anjo, o poeta –
titubeantes eunucos à volta do fogo.
A cobra, esmagada pela pata férrea de um homem;
O anjo, depenado por um poeta esganado.
Da lama nascem poemas que serpenteiam
até ascenderem aos céus;
Mas nunca sem antes passarem por esse homem.
Esse homem que, por medo, escreve palavras.      

segunda-feira, 4 de abril de 2011

deus chora porque não sabe morrer

"... caiu sobre a cidade um silêncio pesado, como se um luto mais profundo tivessem de purgar, talvez o duma religião ofendida, talvez o insuportável remorso dos actos fratricidas e foi então que, rompendo as últimas barreiras da dignidade e do recato, a fome se mostrou na cidade em sua mais obscena expressão, que menor obscenidade é a exibição dos comportamentos íntimos do corpo do que ver extinguir-se esse corpo à míngua de alimento sob o indiferente e irónico olhar de deuses que, tendo deixado de guerrear uns contra os outros por serem imortais, se distraem do aborrecimento  eterno aplaudindo os que ganham e os que perdem, uns porque mataram, outros porque morreram."

José Saramago, História do Cerco de Lisboa.
Axioma

Um dia, pegarei em todos os meus medos,
disse-o uma vez e não sem em isso crer,
tomarei todos eles em meu regaço.
Depois
– escuta, Adão –,
 depois,
hei-de afagar-lhes as cabeças
e beijar-lhes os corpos até aos pés.

E um a um, sempre por cada um vertida uma lágrima de mim,
devorá-los-ei lentamente como que para congelar
o tempo em que me assustavam.
E no final,
– compreendes, Adão? –
os meus músculos rejuvenescidos no colchão de molas fracas,
já sem os medos, livres. E o meu olhar sem receio,
– verás, Adão –,

como será o mais belo contemplar de todos e
os meus olhos, que olhavam ao revés, verão pois
a pureza das manhãs e a mansidão das noites sem olhar para trás,
será sempre um meio
– sentes, Adão? –,
um centro perfeito onde
eu regurgitarei rosas nascidas dos meus
medos ruminados.