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sábado, 22 de agosto de 2015

imagem refletida

5.
Partiria pelas 14:30. Estava nervoso porque era suposto estar nervoso em tais situações. A caminho do aeroporto, sentia um fogo frio na garganta e no estômago, um fogo que me ardia gelidamente em contacto com o ar condicionado do carro dos meus pais. Eu, sempre externamente estoico, deixei-me estar condunzindo, só para não ter saudades disso tão cedo.
Os meus pais discutiam com o meu irmão e o meu primo, que viera porque gostava muito de aeroportos, permanecia calado, provavelmente feliz com a expectativa de rever os aviões a partir e a chegar. Esse meu primo, filho do tubarão, ironicamente enfeitiçado pelos aeroportos. Suspeito eu que fosse pela memória do pai.

Mas era eu quem partiria.

12.
Partiria pelas 14.30.
Estava nervoso porque era suposto
Estar-se nervoso em situações assim.
A caminho do aeroporto, a garganta
Um fogo em uníssono com o ventre,
Um fogo que me ardia friamente
Como o ar condicionado do carro
Dos meus pais. No entanto,
Deixei-me estar conduzindo, só para não ter
Saudades disso tão em breve.
Os meus pais
Discutiam com
O meu irmão e
O meu primo, que viera porque gostava muito de aeroportos
(talvez porque lhe lembrassem do meu tio, que chegava sempre de avião e tinha sido, seria ainda?, o seu pai),
Permanecia calado,
Provavelmente feliz com a expectativa
De rever os aviões na aterragem e descolagem. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

um tubarão morto na praia

3.
     O avião não caiu. Chegámos a Lisboa vindos de Cabo-Verde, sem nunca dormirmos. Eu sabia que algo se havia passado. A minha mãe era uma trave de força que eu não entendia totalmente. Tomávamos direções entre as lojas do aeroporto procurando roupas pretas, dizia ela. E aí, mesmo sem confirmação, eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei. Chorei tanto abraçado à minha mãe, tua irmã, que me afagava a nuca. Vi-te em todos os momentos das nossas vidas. E agora que tudo me parece difuso, eu lamento não ter ficado para sempre menino. Os pardejos que matámos no monte que eu pensava ser do avô. Como um dia me ensinaste a depená-los e aquele que eu depenei demasiado. A tua mota que me fazia sentir especial em relação aos outros meninos. As horas à tua espera no aeroporto e a felicidade de ver o avião que te trazia de França todos os anos. Mostraste-me o aeroporto sem nunca o teres feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as lágrimas caíssem dos teus olhos. Eu lembro-me, tio. Da operação que te ceifou metade de um pulmão, da cicatriz, dos cigarros e da aguardente que sempre tomavas em nossa casa antes de ires para o trabalho. E não sei qual dessas imagens é a mais tua.
       Naquela longa viagem sul-norte, desde o aeroporto até casa, o táxi recordava-nos de todas as lágrimas que iriam cair assim que chegássemos. Essas três horas e tal foram um crescendo. O fim de tarde lento, de calor, o meu gato desnorteado, ao chegarmos a casa. A minha madrinha que avisou a minha mãe para não ir para a casa da avó chorar e o quanto as duas choraram abraçadas por nos teres abandonado. E eu só conseguia imaginar o seu sofrimento medindo-o pelo meu.

        Queria que notassem que eu sofria.

        Talvez porque pensasse que me vias de onde estivesses.
      Subimos o caminho poeirento até a casa da avó. Abracei-me a um dos teus sobrinhos e chorei. A minha camisola preta de mangas compridas que havia escolhido pela cor, quando achava que essa cor te respeitaria, prendia o meu primo com força, ele muito maior do que eu, eu pequeno, apenas um dos sobrinhos, a chorar muito e à espera de ainda te ver. E o primo a dizer que depois de morrermos era como uma máquina que terminava. E eu não sabia o que ele queria dizer porque te queria num sítio melhor, à nossa espera.

      A tua mulher chorava num dos quartos e eu beijei-a com a minha boca nojenta e rebentada, e senti-me porco e indigno. Eu sofria e queria que as pessoas vissem que sofria. Não porque o meu sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem que eras o meu preferido e que talvez eu também fosse o teu. A avó chorava na sala, cercada pelas velhas. Do avô não me lembro, mas sei que ele te sentiu como nenhum de nós. Era uma tarde lenta de verão. A morte tocou-nos no calor e fomos dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.