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sábado, 30 de abril de 2016

o conto das duas raposas

       Escorregou da boca e quase caiu na neve. Se caísse, quebraria o rasto contínuo sobre o manto branco e criaria uma mancha. Era carregada a custo e com passada leve, no silêncio da montanha, onde não era possível ouvir-se o sangue escorrer-lhe do corpo: uma espécie de compasso fúnebre. O vento cortava o silêncio. Uivando. Silvando num redemoinho agudo.
         Não lhe era importante que o tempo urgisse, que os lobos cedo fossem sentir a morte no ar. Para ela nada era importante, não mais. O seu pelo branco, agora manchado. Vistas um pouco mais de longe, dir-se-ia que as duas raposas eram iguais. 
       O movimento parou e ela foi erguida no ar. Não podia notar, mas havia uma respiração ofegante no seu pescoço, um alheamento que permitiria escutar algum ruído distante, um bafejar aflito. Mas o vento abriu-lhe o pelo do dorso com uma rajada direcionada e a caminhada recomeçou, o passo acelerado, mais diminuto mas também mais lesto.
Numa curva marcada por um penedo havia uma toca e seis olhos famintos. Se conseguisse, sentiria o calor aconchegante daquele buraco. Foi largada no chão com cuidado e, por momentos, dir-se-ia que permaneceria intacta e apenas caída, como uma piedade, mas no calor daquele cadoz a saciedade não se compadecia da morte nem a crueldade suplantava a ausência do artifício. A natureza era assim: o sustento possível e necessário até mais não haver.
A que servia de refeição estava tingida pelo pescoço abaixo de vermelho-sangue, como a imitar as outras que agora a devorariam. Era-lhes em tudo igual exceto na cor do seu pelo, branco como a neve que pisara, viva, e agora maculado. Os dentes haviam-se-lhe arreganhado para sempre num esgar indecifrável.

          O progenitor deitou-se nas quatro patas e enroscou a cauda à volta do corpo peludo. As crias atiraram-se sobre a refeição e a mãe, que esperara pacientemente, lambeu com tranquilidade o focinho da raposa-macho. Sobreviveriam mais uns dias. 


Don Gutoski, "A Tale of Two Foxes"




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