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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Desajuste

     - Os meus gatos são meigos, não arranham. Há outros gatos que são mais malvados, digamos assim. Claro que dizer que gatos são malvados é estupidez humana, querer atribuir qualidades nossas a bichos inocentes. O teu é um pouco agressivo.
    Ele falava e notava-se uma certa angústia na sua voz, como se justificasse algo que tinha feito com aquela conversa um tanto ou quanto desviante. 
     - É como as mulheres gordas: justificam a sua gordura ou apetite voraz com merdas completamente absurdas, porque "ter a perna magrinha é feio" ou "comer para a frente é o caminho porque ser magro é mau sinal" ou até "ser magro é muito feio, é mais bonito assim as pessoas serem gordinhas, terem a parrequinha gordinha".
     Este não falou com angústia, era mais uma certa mesquinhez e irrequietude que se ouvia no seu tom grave.      
      Mas expliquemos o cenário: uma cozinha aquecida pelo fogão de lenha, dois homens fisicamente distintos: o que está sentado (o que falou dos gatos) veste-se todo de preto e usa uma cartola ridícula na cabeça, tem um óculo no olho direito e fala entre fumaçadas de cachimbo (dir-se-ia que era um homem gentil no sentido britânico da coisa, mas o seu aspeto era profundamente saloio por ser ensimesmadamente idiota na época em que estavam, o séc. XXI); o outro homem, de pé e a lavar a loiça, é menos alto do que o outro, veste roupas adequadas ao tempo em que vive (pronto, está quase todo de vermelho, mas isso é um pormenor) e está desejoso de acabar de lavar a loiça para poder fumar um cigarro (não gosta de cachimbices e neste momento está muitíssimo enervado por o outro senhor não se oferecer para ajudar a arrumar a cozinha). Está explicado o cenário, espero eu.
     - Sabias que és barítono? Nota-se na tua voz. Não te preocupes, quase todos os homens são barítonos, raros são os tenores e mais raros ainda os contratenores. Barítono vem do grego e significa algo como "que soa profundo", grave.
    A sua voz também era grave, agravada até pela alta fumarada que fazia com o cachimbo, a conversa ia perdendo fios à meada.
      - Explica-me lá outra vez: como é que se aplica a categorização das vozes do canto erudito ou lírico ao mainstream e ao dia-adia? 
      - É como já te tinha dito: elaborou-se essa lista, digamos assim, antes da invenção do microfone, por exemplo.
       - Continuo sem entender o propósito.
      Tinha terminado de lavar o último prato. Sentia-se imensamente cansado e ainda com raiva silenciosa. Olhava para o outro da cartola com um certo desdém e violência contida. Escondeu as mãos debaixo da mesa para ocultar aquele seu ódio secreto e profundo de que os punhos cerrados eram metáfora. Teve mesmo de se morder por dentro para não explodir. Não já. Com um esforço sobre-humano, acalmou e descerrou os punhos, e subiu as mãos a medo para acender um cigarro. O outro ainda fumava o cachimbo com prazer.
      - Dás-me lume? 
      O homem do óculo, gentil, ofereceu-lhe imediatamente uma caixa de fósforos. 
      - Deves-te achar, deves.
      - Perdão? O quê, os fósforos? Gosto mais do sabor da primeira passa quando acendo cigarros com um fósforo. Além disso, são bastante mais práticos para acender o cachimbo.
      - Não é só isto - perdia as estribeiras -, todo tu és execrável, nojento, foleiro, saloio.
    O homem que lavara a loiça falava com fogo nos olhos, por entre passas rápidas e esfomeadas. O outro ouvia-o com uma expressão de culpa que nunca saberemos descortinar, apenas ajeitando o óculo de quando em vez, o cachimbo apagado. Por entre insultos e escárnio, retirou a cartola da cabeça e deixou a descoberto uma cabeça careca que não se coadunava com a sua idade. O primeiro homem calou-se.
   - És mesmo filho da puta, resmungou entre dentes, queres que me comova com doenças, é?
      - Não to queria dizer, não assim, pelo menos. 
      - Não me inspiras pena nem arrependimento.
      - Não pretendia fazê-lo, de qualquer forma. I'll be seeing you, sir. Take care.
      O homem voltou a pôr a cartola na cabeça e foi como se nunca tivesse tido cancro na vida. O tiro ecoou pela casa e sentiu-se o estrondo também na rua. O sangue espirrara para os pratos acabados de lavar e para a cara do homem mais alto, sentado de pistola ainda apontada ao outro. Teria de lavar a loiça outra vez e aquele filho da puta nunca ofereceria ajuda.  

2 comentários:

  1. Sinto a influência de Adília Lopes aqui... e também no post anterior. É apenas coincidência?

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  2. Humm n estava a pensar nela qd escrevi este, mas fiz uma citação adulterada de uma música d'A Naifa ("os gatos são meigos") cujo poema deve ser dela!

    Qd ao do Natal: sim, aqui sim! :)

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