- Os meus gatos são meigos, não arranham. Há outros gatos que são mais
malvados, digamos assim. Claro que dizer que gatos são malvados é estupidez
humana, querer atribuir qualidades nossas a bichos inocentes. O teu é um pouco
agressivo.
Ele falava e notava-se uma
certa angústia na sua voz, como se justificasse algo que tinha feito com aquela
conversa um tanto ou quanto desviante.
- É como as mulheres gordas:
justificam a sua gordura ou apetite voraz com merdas completamente absurdas,
porque "ter a perna magrinha é feio" ou "comer para a frente é o
caminho porque ser magro é mau sinal" ou até "ser magro é muito feio,
é mais bonito assim as pessoas serem gordinhas, terem a parrequinha
gordinha".
Este não falou com angústia, era mais uma certa
mesquinhez e irrequietude que se ouvia no seu tom grave.
Mas expliquemos o cenário:
uma cozinha aquecida pelo fogão de lenha, dois homens fisicamente distintos: o
que está sentado (o que falou dos gatos) veste-se todo de preto e usa uma
cartola ridícula na cabeça, tem um óculo no olho direito e fala entre fumaçadas
de cachimbo (dir-se-ia que era um homem gentil no sentido britânico da coisa,
mas o seu aspeto era profundamente saloio por ser ensimesmadamente idiota na época
em que estavam, o séc. XXI); o outro homem, de pé e a lavar a loiça, é menos
alto do que o outro, veste roupas adequadas ao tempo em que vive (pronto, está
quase todo de vermelho, mas isso é um pormenor) e está desejoso de acabar de
lavar a loiça para poder fumar um cigarro (não gosta de cachimbices e neste momento está muitíssimo enervado por o outro senhor não se oferecer para
ajudar a arrumar a cozinha). Está explicado o cenário, espero eu.
- Sabias que és barítono?
Nota-se na tua voz. Não te preocupes, quase todos os homens são barítonos,
raros são os tenores e mais raros ainda os contratenores. Barítono vem do grego
e significa algo como "que soa profundo", grave.
A sua voz também era grave,
agravada até pela alta fumarada que fazia com o cachimbo, a conversa ia
perdendo fios à meada.
- Explica-me lá outra vez:
como é que se aplica a categorização das vozes do canto erudito ou lírico ao
mainstream e ao dia-adia?
- É como já te tinha dito:
elaborou-se essa lista, digamos assim, antes da invenção do microfone, por
exemplo.
- Continuo sem entender o
propósito.
Tinha terminado de lavar o
último prato. Sentia-se imensamente cansado e ainda com raiva silenciosa.
Olhava para o outro da cartola com um certo desdém e violência contida.
Escondeu as mãos debaixo da mesa para ocultar aquele seu ódio secreto e
profundo de que os punhos cerrados eram metáfora. Teve mesmo de se morder por dentro para não explodir. Não já. Com um esforço sobre-humano, acalmou e descerrou os punhos, e subiu as mãos a
medo para acender um cigarro. O outro ainda fumava o cachimbo com prazer.
- Dás-me lume?
O homem do óculo, gentil,
ofereceu-lhe imediatamente uma caixa de fósforos.
- Deves-te achar, deves.
- Perdão? O quê, os fósforos?
Gosto mais do sabor da primeira passa quando acendo cigarros com um fósforo.
Além disso, são bastante mais práticos para acender o cachimbo.
- Não é só isto - perdia as
estribeiras -, todo tu és execrável, nojento, foleiro, saloio.
O homem que lavara a loiça
falava com fogo nos olhos, por entre passas rápidas e esfomeadas. O outro
ouvia-o com uma expressão de culpa que nunca saberemos descortinar, apenas
ajeitando o óculo de quando em vez, o cachimbo apagado. Por entre insultos e
escárnio, retirou a cartola da cabeça e deixou a descoberto uma cabeça careca
que não se coadunava com a sua idade. O primeiro homem calou-se.
- És mesmo filho da puta,
resmungou entre dentes, queres que me comova com doenças, é?
- Não to queria dizer, não
assim, pelo menos.
- Não me inspiras pena nem
arrependimento.
- Não pretendia fazê-lo, de qualquer
forma. I'll be seeing you, sir. Take care.
O homem voltou a pôr a
cartola na cabeça e foi como se nunca tivesse tido cancro na vida. O tiro ecoou
pela casa e sentiu-se o estrondo também na rua. O sangue espirrara para os
pratos acabados de lavar e para a cara do homem mais alto, sentado de pistola
ainda apontada ao outro. Teria de lavar a loiça outra vez e aquele filho da
puta nunca ofereceria ajuda.
Sinto a influência de Adília Lopes aqui... e também no post anterior. É apenas coincidência?
ResponderEliminarHumm n estava a pensar nela qd escrevi este, mas fiz uma citação adulterada de uma música d'A Naifa ("os gatos são meigos") cujo poema deve ser dela!
ResponderEliminarQd ao do Natal: sim, aqui sim! :)