Da minha janela eu
conseguia ver o monte em frente à casa, mas ao contrário do que as mentes mais
bucólicas possam desejar e imaginar, o monte não era um maravilhoso verde com
árvores frondosas e plantas viçosas e abundantes, antes era um caralho dum ermo
de árvores cortadas, plantas destruídas e pedras postas ao descoberto por mão
humana, tudo deixado ao abandono, um local de erva, sucata e lixo. A visão era
já de si deprimente e o facto de a manhã já não voltar até ao dia seguinte era
um elemento fundamentalmente triste.
Falta o tempo da história. Era por assim dizer o final do
verão, meados de setembro, e era por essa altura que, historicamente, naquele
local que era nortenho, as últimas brasas estivais se principiavam em
extinguir, perdiam o fôlego e o sol se distanciava altivo. O outono chegaria em
breve e era por essa altura que as velhas daquele lugar pequeno iniciavam as
suas fogueiras.
Eu nunca percebera bem o porquê das fogueiras. Por mais
pequeno que aquele cu do mundo fosse, a verdade é que havia recolha de lixo e
os ecopontos não faltavam. As velhas tinham laivos piromaníacos e tudo o que
fosse lixo que estivesse a mais em casa era incinerado em fogueiras que poluíam
os céus e anteviam a transição do calor para a brisa fresca do Outono.
Havia uma certa vizinha minha que era perita em fazer
fogos, caralho da velha. Juntava todos os papelinhos a mais que tivesse, todos
os jornais e livros que jamais seriam lidos (por ela, pelo menos), tudo o que
fosse antigo e de não uso, juntava tudo e acendia com olhos de Auto de Fé um fogo
que rapidamente se insinuava numa espiral ascendente, enorme e terrível. Houve
alturas em que ver os livros assim queimados me dava um nó no estômago de tal
forma apertado que quase vomitava as tripas. Aos poucos, no entanto, fui-me
habituando à Santa Inquisição local e consegui adotar uma postura indiferente.
Mas já havia passado muito tempo desde que assistira a
uma fogueira e a minha memória havia decidido esquecer-se desses pormenores
mais sórdidos. O choque veio quando da minha janela avistei a velha a juntar
destroços num montinho que ia crescendo. Lenha, papéis, plástico (a sério,
querida velhinha da aldeia inocente, plástico?), tudo quanto pudesse
maravilhosamente arder num inferno de calor e cinza.
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