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terça-feira, 28 de maio de 2013

pequenos grandes fogos

           Da minha janela eu conseguia ver o monte em frente à casa, mas ao contrário do que as mentes mais bucólicas possam desejar e imaginar, o monte não era um maravilhoso verde com árvores frondosas e plantas viçosas e abundantes, antes era um caralho dum ermo de árvores cortadas, plantas destruídas e pedras postas ao descoberto por mão humana, tudo deixado ao abandono, um local de erva, sucata e lixo. A visão era já de si deprimente e o facto de a manhã já não voltar até ao dia seguinte era um elemento fundamentalmente triste.
            Falta o tempo da história. Era por assim dizer o final do verão, meados de setembro, e era por essa altura que, historicamente, naquele local que era nortenho, as últimas brasas estivais se principiavam em extinguir, perdiam o fôlego e o sol se distanciava altivo. O outono chegaria em breve e era por essa altura que as velhas daquele lugar pequeno iniciavam as suas fogueiras.
            Eu nunca percebera bem o porquê das fogueiras. Por mais pequeno que aquele cu do mundo fosse, a verdade é que havia recolha de lixo e os ecopontos não faltavam. As velhas tinham laivos piromaníacos e tudo o que fosse lixo que estivesse a mais em casa era incinerado em fogueiras que poluíam os céus e anteviam a transição do calor para a brisa fresca do Outono.
            Havia uma certa vizinha minha que era perita em fazer fogos, caralho da velha. Juntava todos os papelinhos a mais que tivesse, todos os jornais e livros que jamais seriam lidos (por ela, pelo menos), tudo o que fosse antigo e de não uso, juntava tudo e acendia com olhos de Auto de Fé um fogo que rapidamente se insinuava numa espiral ascendente, enorme e terrível. Houve alturas em que ver os livros assim queimados me dava um nó no estômago de tal forma apertado que quase vomitava as tripas. Aos poucos, no entanto, fui-me habituando à Santa Inquisição local e consegui adotar uma postura indiferente.
            Mas já havia passado muito tempo desde que assistira a uma fogueira e a minha memória havia decidido esquecer-se desses pormenores mais sórdidos. O choque veio quando da minha janela avistei a velha a juntar destroços num montinho que ia crescendo. Lenha, papéis, plástico (a sério, querida velhinha da aldeia inocente, plástico?), tudo quanto pudesse maravilhosamente arder num inferno de calor e cinza.


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