3.
O avião não caiu. Chegámos a Lisboa
vindos de Cabo-Verde, sem nunca dormirmos. Eu sabia que algo se havia passado.
A minha mãe era uma trave de força que eu não entendia totalmente. Tomávamos
direções entre as lojas do aeroporto procurando roupas pretas, dizia ela. E aí,
mesmo sem confirmação, eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube
que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei. Chorei
tanto abraçado à minha mãe, tua irmã, que me afagava a nuca. Vi-te em todos os
momentos das nossas vidas. E agora que tudo me parece difuso, eu lamento não
ter ficado para sempre menino. Os pardejos que matámos no monte que eu pensava
ser do avô. Como um dia me ensinaste a depená-los e aquele que eu depenei
demasiado. A tua mota que me fazia sentir especial em relação aos outros
meninos. As horas à tua espera no aeroporto e a felicidade de ver o avião que
te trazia de França todos os anos. Mostraste-me o aeroporto sem nunca o teres
feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as
lágrimas caíssem dos teus olhos. Eu lembro-me, tio. Da operação que te ceifou
metade de um pulmão, da cicatriz, dos cigarros e da aguardente que sempre
tomavas em nossa casa antes de ires para o trabalho. E não sei qual dessas
imagens é a mais tua.
Naquela longa viagem sul-norte, desde o
aeroporto até casa, o táxi recordava-nos de todas as lágrimas que iriam cair
assim que chegássemos. Essas três horas e tal foram um crescendo. O fim de
tarde lento, de calor, o meu gato desnorteado, ao chegarmos a casa. A minha
madrinha que avisou a minha mãe para não ir para a casa da avó chorar e o
quanto as duas choraram abraçadas por nos teres abandonado. E eu só conseguia
imaginar o seu sofrimento medindo-o pelo meu.
Queria que notassem que eu sofria.
Talvez porque pensasse que me vias de
onde estivesses.
Subimos o caminho poeirento até a casa da avó. Abracei-me a um dos teus
sobrinhos e chorei. A minha camisola preta de mangas compridas que havia
escolhido pela cor, quando achava que essa cor te respeitaria, prendia o meu
primo com força, ele muito maior do que eu, eu pequeno, apenas um dos
sobrinhos, a chorar muito e à espera de ainda te ver. E o primo a dizer que
depois de morrermos era como uma máquina que terminava. E eu não sabia o que
ele queria dizer porque te queria num sítio melhor, à nossa espera.
A tua mulher chorava num dos quartos e
eu beijei-a com a minha boca nojenta e rebentada, e senti-me porco e indigno.
Eu sofria e queria que as pessoas vissem que sofria. Não porque o meu
sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem que eras o
meu preferido e que talvez eu também fosse o teu. A avó chorava na sala, cercada
pelas velhas. Do avô não me lembro, mas sei que ele te sentiu como nenhum de
nós. Era uma tarde lenta de verão. A morte tocou-nos no calor e fomos
dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.
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