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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

os quatro tempos de um momento



    Uma mulher, visivelmente deslocada, saiu do autocarro, os óculos de sol tapando-lhe substancialmente o rosto e o lenço zebrado cobrindo-lhe os cabelos, olhou em volta e permaneceu em seu lugar, ondulada pela brisa quente, após o som da viatura, morosa, ter desaparecido no espaço. Não se sabe quem esta mulher era, nem que vinha fazer à aldeia, tão desabituada a estranhos. A sua barriga de grávida parecia uma deformação perante o resto do corpo delicado, estreito. A mulher continuou silenciosa e quieta, olhando em volta, à procura de alguém ou de algo. As poucas pessoas que naquela rua se demoravam nos pensamentos, sentadas nos bancos públicos, observavam-na com alguma curiosidade e relutância. O sino da aldeia soava não longe dali e à última badalada a figura de vestido preto segurou com mais força a sua mala e principiou em caminhar em direcção à tasca.

    Entrando, o barulho dos choques eléctricos que eram a morte das moscas intimidou-a, assim como novos olhares por parte de alguns velhos, jogando cartas numa mesa ao centro. O dono do estabelecimento enxugava copos e chávenas mal lavados, e o cheiro da sala confundia-se com o fedor do bafo do diabo que assolava a aldeia nessa semana. A mulher sentiu-se desmaiar e susteve a respiração por segundos, pousando a mala no chão e apoiando a mão na porta. A sua gravidez não lhe permitia odores fortes, quanto mais nauseabundos como aquele. Mas havia, os seus óculos de sol impenetráveis pareciam dizer, havia assuntos prementes a tratar e nenhum tempo para quebras de tensão ou vómitos que demorassem o seu propósito naquele lugar esquecido. Os olhares dos homens ainda estavam estagnados na sua figura, e atravessar a sala era uma tarefa monstruosa, titânica, mas a mulher inspirou fundo e os seus saltos altos ecoaram na modorra da tasca. Poucos passos foram necessários até ao balcão, mas cada um deles era uma batida infinita e penosa, cada som uma repetição de outro som.

    Onde está Diógenes? Preciso de lhe falar. O dono da tasca permaneceu mudo, palito no canto da boca e um farrapo sujo no ombro, sem expressão alguma no rosto, como se aquela pergunta não fizesse sentido algum ou ele o não tivesse ouvido. A mulher tornou a perguntar onde estava Diógenes. Os homens que antes jogavam cartas e depois a olhavam continuavam olhando-a silenciosamente. Impaciente, a estranha bateu o pé no chão e ergueu a voz. Eu sei que você sabe onde ele está e eu preciso de lhe falar. O que a mulher olvidava era que a pessoa a quem se dirigia era um homem de muito poucas palavras e de muito lento raciocínio. As moscas morriam em cadeia e um dos homens da mesa levantou-se, deu um passo em direcção ao balcão e pediu um bagaço. De um só trago, o velho bebeu o líquido amarelado e disse, Diógenes está enlouquecendo e o padre ofereceu-lhe um canto na sacristia e uma cama, de onde não sai senão para olhar os pássaros no exterior. A mulher, perplexa, murmurou um obrigada quase imperceptivelmente, e virou costas. À soleira da porta virou-se outra vez para os homens e perguntou se Diógenes sabia que ela estava grávida. Nenhum dos homens respondeu. O silêncio interrompido pelas moscas e o barulho das coisas foi resposta suficiente para aquela estranha, forasteira, que pegou na sua mala e saiu da tasca a custo por carregar tanto peso consigo.

    Deambulou depois pela aldeia com as malas nas mãos, sem saber se havia de ficar ou partir. A noite caíra sobre a terra, e as estrelas, buracos por onde se podia vislumbrar o paraíso, não lhe marcavam o caminho. Como um pirilampo sem luz, não via o rumo que seguia e tomava. Ao pousar as malas, caiu também o desespero do deslocamento, da acutilância da noite e do peso de estar em busca de uma agulha num palheiro sem saber se a queria realmente encontrar. As suas pernas absorveram-lhe toda a ansiedade dos olhos olhando para dentro, e teve de sentar-se. Não tinha fome de comida nem sede de água. O objectivo da sua missão escondia-se cada vez mais coberto de um caos que lhe confundia todos os propósitos. Então, sob o luar e o terrível céu brilhante, a mulher não conseguiu chorar – antes entregou-se a um martírio autista que catatonicamente a destruía perante a treva resplandecente da noite.


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