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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

a solidão

    - Do corpo não lhe sabemos mais do que a morte, disse a mulher não sem esperança. 
   Ao mesmo tempo que lhe saíam as palavras da boca, brincava com uma moeda entre os dedos da mão esquerda e segurava um cigarro com a direita. O homem tinha apenas vagar para acenar afirmativa ou negativamente, assim, sem braços e com uma mordaça a impedir-lhe a fala. Dizia-se que o homem tinha ou nascido já assim, desbraçado, ou tinha cortado os próprios membros superiores em jeito de expiação. De que pecados, não o saberemos, ele apenas pedia à mulher para lhe retirar a mordaça quando precisava de comer e nunca falava. 
    Sentados à mesa, conversavam sem diálogo, habituados ao monólogo e à rotina. A mulher retirou a mordaça ao homem depois de terminar o cigarro e serviu-lhe a comida à boca. O homem mastigava lentamente, mais porque tinha de ser do que porque tivesse apetite. Aquele homem era o lixo de si mesmo, do que tinha sido, e dizia-se também que o seu pensamento, a sua alma - essa coisa tão bonita de tão sonhada - estavam num qualquer desterro auto imposto. Comia então o homem devagar e a mulher falava agora de coisas menos pneumáticas. 
    - Hoje o absurdo da coisa é que o gato adormeceu no sofá e vomitou-o todo. Não entendo os felinos: antes de se instalarem, passam quinze minutos a fazer o ninho com as patas, depois adormecem e vomitam a meio.
    Dir-se-ia que o homem nem a ouvia - era apenas um espectro sem braços, uma mancha humana deixada a esvaecer presa num corpo ridículo e abjecto. Ele sabia-o, ela sabia-o. Mas nenhum dos dois sabia que iam bater à porta daí a pouco e que a sua rotina iria ser alterada sem retorno.
   - A esta hora?, perguntou a mulher suspeitando. Pousou devagar a colher no prato, retirou o guardanapo do colo e pousou-o com delicadeza na mesa, não sem antes limpar a boca ao homem, ajeitou a saia, levantando-se, e foi abrir. 
    - Boa noite, disse uma voz ainda sem rosto. Posso pedir-lhe um copo de água?
    A mulher hesitava em responder e demorou algum tempo a produzir um som que fosse. O homem, sentado e sem braços, nem sequer havia voltado a cabeça para observar nem havia fingido interesse algum. 
    - Sim, disse por fim a mulher. Espere um segundo. Dirigiu-se rapidamente ao frigorífico, retirou uma garrafa de vidro cheia de água fresca e encheu um copo. Aqui tem, disse, entregando o copo à voz, que não agradeceu antes de beber nem no fim.
    A voz disse apenas boa noite, e o homem ouviu passos a afastarem-se. A mulher fechou a porta ainda com uma expressão de surpresa e incredulidade. Eles pensavam que estavam sozinhos no mundo. 


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