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domingo, 2 de dezembro de 2012

a meio caminho andado

     Um caralho de um frio de rachar, o termómetro a marcar um grau, eu com uma dorzinha leve na boca do estômago, náuseas estranhas (acho que era de estar em casa à lareira, demasiado perto do calor) e dor no pescoço de passar demasiado tempo ao computador a tentar encontrar quem estivesse disposto a fazer-me um broche. Estivera a ler Rubem Fonseca, não se admirem.

Saí à rua convicto de que não estava assim tanto frio, saí e antes meti um cigarro na orelha, bem sei que pareço um carpinteiro ou um trolha com a porcaria do cigarro na orelha, mas acredito que lá no fundo até dá algum estilo. Talvez eu seja simplesmente idiota.

      E magro, também sou magro. A minha mãe viu-me a escrever no teclado do computador, minutos antes de eu sair de casa, e como escrevo muito rapidamente, disse que gostava de escrever com esta velocidade toda. Respondi-lhe que provavelmente nunca iria conseguir e arrependi-me logo a seguir. Não sei porque respondo este tipo de coisas à minha mãe. Talvez porque ela pense constantemente que eu sofro de cancro no estômago ou na vesícula, que esteja na realidade a morrer desnutrido e emaciado. A verdade é que sou magro mas como o suficiente. Sinto-me inchado muitas vezes porque sou pseudo-anorético, nada mais. Gosto de ver ossos salientes.

    Mas saí de casa. O intuito era ou ser mamado até ao tutano, sugado até à secura, ou simplesmente caminhar. Calcei uns ténis baratos e infinitamente finos demais para aquele tempo, pus um cachecol leve ao pescoço, um casaco grosso, e lá fui eu. Eu gosto da roupa de inverno mas confesso que os casacos demasiado grossos tiram todo o sex appeal às pessoas. Parecem uma cambada de humpty dumpties, especialmente se usarem skinny jeans.

      Ah!, mas o cigarro na orelha. Procurei-o com os dedos (não uso luvas, também não estava assim tanto frio) e não o encontrei. Fiquei fodido, deve ter caído quando me baixei para calçar os ténis, e agora, que caralho, tinha de enrolar outro, mas mesmo não estando assim tanto frio para usar luvas, estava realmente algum frio e teria de ficar com as mãos ao relento durante alguns segundos. Decidi não fumar. Quase que me alegrei com a decisão porque estaria a poupar um prego aos meus pulmões e coração, mas na realidade eu estava literalmente a cagar-me para os meus pulmões e coração, só me interessava e importava a pele e os dentes, que são as coisas que se veem. É uma forma distorcida de hedonismo e de vaidade.

      Nunca pensei que fosse essa a noite em que morreria.

     Eu caminhava rapidamente arfando visivelmente sob o céu gelado e claro, o vapor do meu bafo mostrado pela luz dos poucos candeeiros daquela merda daquela aldeia onde vivia. Sempre odiei que dissessem que as aldeias conservam algo de mais puro e inocente do que as cidades, que as pessoas são mais simples e amáveis e bondosas. Tudo uma grandessíssima filha da putice de uma mentira. As pessoas são até mais mesquinhas, têm cabeças de metal, pensamentos mecanicistas, pequenos e largamente fabris e industriais, e cruzam os braços ao caminharem na rua, e têm cotão nos cabelos, criticam as roupas das pessoas que vão aos funerais, e acham que não ter as cortinas lavadas no dia do velório de um defunto parece mal. Caguei para as aldeias e para as vilas, sinceramente, e para a merda das vidas reduzidas a

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      E ainda assim morri. Numa aldeia e de uma forma não menos mecanicista. É que pouco depois da minha casa há uma ponte onde passa um rio muito estreito e sujo, que cheira ou a merda ou a sangue podre dos animais sacrificados no matadouro, rio acima. Não que eu seja vegetariano, não sou, não cheguei ao topo da cadeia alimentar para comer erva (ok, não tem que ver com isto, tem mais que ver com o facto de eu não querer perder massa muscular e detestar tudo o que seja soja).

Mas a estupidez da minha morte, esqueçam a ponte que não tem nada a ver com o assunto: ia eu, farto de não poder fumar, decidi enrolar um cigarro a andar para não morrer de frio. Nós os desta aldeia temos a mania de andar no meio da estrada. É até inconsciente. E devo ter estado mesmo no meio da estrada quando… Não, relaxem, seria fácil demais se eu tivesse sido simplesmente atropelado ou tivesse caído ao rio (já disse que a ponte não tem nada a ver com a história). É que enrolei o cigarro no meio da estrada, a caminhar. E parei para o acender. Aquela primeira passa é sempre a melhor, o fumo a entrar pelos corpos adentro, é uma sensação primitiva e orgásmica que não consigo explanar. Gosto mesmo muito de fumar. Mas a temperatura parecia ter descido uns graus valentes quando acendi o cigarro, e eu apressei o passo, ainda no meio da estrada. E foi então que aconteceu: umas pontadas no peito, o braço sem força, uma dor perfurante no centro do meu tórax (mais sentível para o lado esquerdo, o caralho do coração, claro), um aperto, um aperto, um aperto, uma pressão, um aperto. O meu passo começou a acalmar, o meu corpo finalmente a ceder a um cansaço repentino e bruto, o meu corpo a morrer, o meu corpo a quebrar perante o enfarte, o enfarte, o enfarte, estava a ter um enfarte, caí pesado sobre o chão, o cigarro rolou para a berma da estrada, eu no meio da estrada, puta que pariu, morrer no meio da estrada é prolongar a triste fama que as pessoas desta aldeia que detesto têm.

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